quarta-feira, 4 de março de 2009

Carlinhos Brown



Carlito Marrón
BMG, 2003

Entrevistei Carlinhos Brown em 2003, quando veio a Portugal lançar Carlito Marrón, um álbum latinizado onde misturava ritmos baianos com outros latino-americanos e pop internacional. Mal entrei para a sala onde o músico estava a receber os jornalistas, a primeira coisa que me disse, foi: «É a minha primeira oportunidade de realmente ser entrevistado em Portugal, e estou adorando.» Carlinhos Brown irradia simpatia. A sua doçura é propriamente contagiante e quando saí do hotel onde decorrera a conversa sentia-me a caminhar sobre nuvens.

Quem é este Carlito Marrón?
É um desenvolvimento do Carlinhos Brown. Mas o Carlito não mata o Carlinhos, não é uma substituição, mas é um alter-ego. Mais do artista do que da pessoa, aliás.

De onde vêm as influências principais para este álbum tão latinizado?
A minha principal influência vem da oralidade. Eu aprendo com o mundo. Com as coisas do mundo. Como é que o Fernando Pessoa chegou a mim? Ele pode ter chegado voando nos jornais, numa página de jornal que apanhei na rua, que veio com o vento e com o lixo. Como é que o povo mesmo lê os jornais? É assim. Você confunde páginas policiais, mas realmente ensanguentadas, porque serviram para enrolar o peixe ou a carne. Quando desembrulha a comida, aproveita para ler alguma coisa. É esse tipo de comunicação. Carlito Marrón surge assim. Com essa vontade de relatinizar.

Este disco foi gravado para a BMG espanhola e lançado em Espanha antes de o ser no Brasil. Porquê?
Porque passamos por fases também. A cena musical brasileira está boa, é fértil, mas também é um mau momento de mercado. A pirataria cresceu. Em toda a fronteira latina, pela pobreza. Não é bom negócio hoje fazer disco no Brasil, nem para os conceituados. Imediatamente é pirateado e vendido nas lojas. Toda a música menor, que nós fazemos na América latina, ela tem esse sabor que vem do ar. O Panarabismo aparece assim muito na Bahia, até por causa dos espanhóis e dos portugueses. Isso chegou à cultura da rua, ao bloco afro. Por isso, é uma das coisas que me sinto melhor fazendo. Aparecem assim novas harmonias, novos acordes.

Quando fala de relatinização, que quer dizer exactamente?
O Português descobre o Brasil, e a Bahia nasce primeiro do que Cuba. A Bahia é Yuruba como Cuba é, só que nunca tivemos a mesma oportunidade. Cuba é um país, Bahia é um Estado. Mas são gémeos no seu comportamento. Na comida e etc. A Bahia tem rumba, como tem samba, mas é muito confundida como africana, mas do que nordestina. Mas a Bahia tem fado, é um dos lugares onde mais se toca bandolim no Brasil. Além do chorinho. Temos orgulho nesta herança. Uma das coisas que a música e a vinda à Europa me ensinou é a não ter fronteiras na cabeça. Nem alfândegas. A alfândega é uma forma de você pedir licença para entrar nos lugares. A música não é assim. Acho que nunca fiz uma música extremamente brasileira, pela influência que o Brasil tem como um todo. Das misturas humanas que nós temos. Podemos utilizar ali várias coisas que estão dentro da nossa cultura, de uma forma natural, não pesquisada. Às vezes, as pessoas imaginam que eu sou um grande intelectual. Nada disso. Eu venho da ignorância, da falta de educação, da pobreza. Minha mãe é uma grande cozinheira, e ela me ensinou o gosto da vida. Na minha infância vi como os pássaros eram naturalmente, vestidos pela natureza.

Vários temas atravessam o disco... um dos quais é a família.
Eu falo da família como alvo. Da violência, do desespero. A família como alvo, às vezes, da própria família. Da descontrução da família. Uso a sagrada família, bizantina, Maria José. A guerra está aí, e não falo da guerra do Iraque. Nas favelas falta o pão, mas há metralhadoras e a alta tecnologia do banditismo.

Fale-me da sua parceria com o Arnaldo Antunes.
Sou um compositor muito intuitivo. Dos sons e das palavras. O que faz a força da minha parceria com o Arnaldo é que eu sou temático e o Arnaldo é um bom desenvolvidor. A gente mistura o negócio.

Este é talvez o seu álbum mais pop.
Eu não tenho essa pretensão de ser pop, porque eu acho que isso é coisa de americano. A minha música vem das misturas do homem. E ela é popular, quando é aceite. Quando entra na consciência colectiva. Eu sou um constructor de sons. Pego em qualquer coisa, sei lá, um saco de açucar, um copo de água, tudo dá música. Eu adoro quando você diz que isto é música pop. Puxa, então, tenho chance. Se para você está pop, é sinal que as pessoas possam vir a gostar. E gostar não significa vender muito e ficar rico com isso. Não, chegar onde preciso chegar. Com simplicidade. Vender muito em Portugal é vender 30 mil. No Brasil é mais de um milhão. O que está acontecendo com Tribalistas. Já não se trata só de vender discos e eu ganhar dinheiro. Para que é que eu quero várias casas se eu passo o tempo todo dentro de aviões. Moro mais no hotel.

Na ficha técnica, fala-se de efeitos áereos? O que é isso?
Invenção minha. Eu sempre peço que a tecnologia não me venha na base. Enquanto eu estiver lá dentro, me pega as frequências mais altas e passa pelos plug-ins. Porque os plug-ins para mim, hoje, são novos instrumentos de percussão. Porque eles reciclam a timbragem e dá outra coisa. Aí eu falo assim: «eu sou o produtor de vocês agora». Eu tenho uma base percussiva (exemplifica) e faço as coisas acontecerem em cima daquela base. Por outro lado, eu também preciso de um contra-plano do meu pensamento. E é por isso que eu chamo esses produtores, que são meus amigos. É impossível uma pessoa só estar certa.

Fale-me de Papi Oviedo e Angá Diaz, que colaboram nalgumas faixas.
São pessoas que estão quentes, que estão actuantes. Este não é um disco de resgate. O Papi é de chorar, tocando. O Angá, para mim, de Cuba é o que tem a cabeça mais aberta. A percussão cubana é diferente da brasileira. Eles lá tocam conga, bongo e timbales. O brasileiro abarcou a miscigenação percussiva do mundo inteiro, toca tabla, conga, pandeiro, mistura tudo. E isso impressiona muito o músico cubano. O cubano termina tendo uma coisa que o baiano tem: que é aquele sabor tradicional. Eu precisava de um tres, queria muito ter esse instrumento que me transmitia as violas sertanejas que eu ouvia na minha infância. Mas também procurei, no que diz respeito a essas três músicas fazer essa mistura com essa visão que você tem de Cuba. Mas aquelas quebradas chegam no meio, viram para uma coisa mais baiana, mais africana. Rumba velha, que você não faz mais em Cuba. Não tem aquela coisa que o Cachao trouxe para a rumba. Os contratempos.

E Rosário Flores?
Rosário foi uma coincidência. Eu conhecia-a e precisava ter alguém que realmente falasse espanhol. Eu também queria a Dulce Pontes, mas não foi possível. Eu queria fazer essa junção Portugal-Espanha.

Fala em Alá, em candoblé...
É sincretismo, essa é a palavra. Todas as religiões pedem paz e todas caminham para um só deus. Cada um tem a sua forma de se vestir. E cada um tem a forma de vestir a sua alma. A miscigenação oferece ao homem já não um espírito, mas vários espíritos. E, por isso, é uma chave para o entendimento da cultura humana. A misigenação e o sincretismo não vêem a terra unicamente como um planeta, mas como um gramde bairro que flutua no universo. Por parte do meu avô, venho de protestantes, dissidentes já do candomblé, e parte do meu pai venho do candomblé do catolicismo. E esse caminho passa pelo espiritismo. Deus é uma coisa simples, como um homem do dia a dia. Deus vem da subway, não do céu. Ele não tem o poder do marketing, do media. Mas como é deus, erra menos do que nós, meros seres humanos.