quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Agnès Jaoui



Canta
Tôt ou tard, 2006

É sobretudo conhecida como a actriz e realizadora de Le Goût des Autres, um filme que lhe valeu fama internacional. Também argumentista (premiada em Cannes), Agnès Jaoui lançou em 2006 Canta, um disco todo cantado em castelhano e... português. Na verdade, ela estudara canto lírico antes de se dedicar por inteiro ao teatro e ao cinema, mas pouca gente o sabia. Canta vem, aliás, na sequência de uma discreta digressão que fez por algumas cidades de França com um recital intitulado «Histórias de Amor». É, com efeito, de amor que falam todas as canções: de amores físicos e platónicos, mas também do seu amor pelas músicas latinas como o flamenco, o bolero, o tango, o merengue ou o fado, que ela canta como se toda a vida o tivesse feito, com uma paixão quase carnal. Canta é um «disco-mala de viagem», assegura ela, uma arca repleta de recordações, vivências e sonhos que fez questão de partilhar e conceber com pessoas de quem gosta especialmente, como o grupo espanhol El Bicho, a portuguesa Mísia e a brasileira Maria Bethânia, para só citar três dos nomes mais sonantes dos muitos que participam no álbum.
Porque escolheu ela, cantar em castelhano e português? «Há várias razões para isso. Gosto de cantar nessas línguas, que me habituei a ouvir desde pequena, e foi em países como Cuba e Argentina que comecei a cantar, com amigos músicos que por lá conheci. Mas há uma outra razão para ter escolhido estas canções: são músicas pouco conhecidas em França e quero dá-las a conhecer, pois se gosto tanto delas, talvez os outros gostem também».
Agnès fala lentamente, pausadamente, como se sentisse relutância em falar de si própria. Percebe-se que preferia não dar esta entrevista, que gostaria de manter secretas as suas recordações e opiniões. De resto, afirmou um dia: «Não quero que saibam quem sou, não quero que me conheçam.» Reconhece que é paradoxal. «Sim, quero comunicar, encontrar pessoas e é por isso que viajo. Quando era pequena, lembro-me de ter ido visitar a casa de Jean-Jacques Rousseau e quando me disseram que tinha morrido, desatei a chorar. A partir do momento em que tive consciência da morte, comecei a querer conhecer o maior número possível de pessoas. Por outro lado, sei que não é bom sabermos demais sobre os outros, pois somos seres humanos, todos temos as nossas fraquezas.»
Uma outra morte que a marcou indelevelmente foi a de Anne Frank. Foi após ter lido o seu Diário que começou a escrever. Agnès meteu na cabeça que se morresse ninguém saberia que tinha existido e quis deixar um testemunho da sua passagem pelo mundo. Pela mesma razão, o seu desejo de ser actriz surgiu cedo. «Queria ser princesa», ri-se ela, «mas em vez disso decidi subir a um palco para que olhassem para mim. Ser actriz era a coisa mais parecida com ser princesa, aos meus olhos». Reconhece que é «um animal citadino, um bicho urbano» e afirma, quase envergonhada: «Tenho mais em comum com uma pessoa de Nova Iorque ou de Lisboa que com um francês da província. Sou uma pessoa muito paradoxal: gosto da tradição e das raízes culturais e detesto-as ao mesmo tempo. Adoro os países do Sul, mas não gostaria de viver fechada neles. Sou muito ambivalente. Não gosto muito dos nacionalismos que podem descambar em fascismos à le Pen. No entanto, a identidade é fundamental e assusta-me sermos tão colonizados pela cultura norte-americana ou a ideia de andarmos todos a consumir as mesmas coisas.»
Tornou-se realizadora de cinema de uma forma quase natural. Em França há esta tradição do autor-realizador e foram os próprios produtores do filme que lhe propuseram realizar o argumento que tinha escrito a meias com Jean-Pierre Bacri, o homem com quem vive há muitos anos (e que contracena com ela no filme). Agnès confessa: «A verdade é que já havia em mim esse desejo latente, que tinha vindo a crescer ao ver trabalhar cineastas como Alain Resnais. Deus sabe como admiro o seu talento, mas nem sempre fazia as escolhas que eu faria e comecei a imaginar o que seria ter de tomar certas decisões. Chegou assim uma altura em que disse para mim própria: é tempo de levares todo o processo da criação de um filme do princípio até ao fim. E apesar dos meus receios, do meu temor, atirei-me de cabeça, sabendo que teria que decidir o mínimo pormenor do filme, da luz ao casting.»
Assumiu-se como realizadora de cinema, aterrorizada com a experiência. Porque era uma desconhecida, porque tinha medo de estragar uma boa história e não queria desiludir os excelentes actores que trabalhavam consigo. Sobre o êxito dos seus filmes, recusa-se a embandeirar em arco. «É um sucesso um pouco virtual se virmos os números», assegura. Para logo acrescentar: «Mas é gratificante verificar que fora do vosso círculo de amigos, e até fora do país onde vivemos, há gente que aprecia o nosso trabalho. Isso é emocionante.»
Ser actriz, dramaturga, argumentista e realizadora de cinema não lhe chegava? Porquê querer gravar um disco? Porque está na moda? «Porque me apeteceu fazê-lo», responde com nova gargalhada. Segundo Agnès Jaoui, representar e cantar são profissões muito próximas. Dá vários exemplos: Jeanne Moreau, Jeanne Balibar, Chiara Mastroianni, Charlotte Gainsbourg… e cita também alguns realizadores de cinema, como Emir Kusturica ou David Lynch. A esse propósito, argumenta: «Num certo sentido é normal porque para realizarmos um filme, na minha opinião, temos que ter o sentido do ritmo».
«A minha vida também passa pela música», insiste Agnès, desabafando: «Em França, porém, o facto de fazer coisas diferentes não é muito bem visto. Em Inglaterra não seria olhada de lado, por realizar filmes e cantar.» No entanto, acha que a situação está a mudar no seu país, nomeadamente graças a programas televisivos como «Star Academy» — o correspondente do nosso «Chuva de Estrelas». Segundo Agnès o gosto pelo canto estava um pouco perdido em França, onde não há nenhuma tradição comparável com o fado ou o flamenco.
Mesmo ao telefone, a voz de Agnès Jaoui aflora-nos como uma carícia amorosa e possui, por isso, uma rara capacidade para nos emocionar. Canta não é um grande disco, mas dá-nos vontade de lhe seguir os passos. Vamos cantar também?