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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Tinariwen



Senta-se a meu lado na carrinha e apresenta-se com um sorriso: «O meu nome é Eyadou.» Acrescenta: «Desculpa o meu francês. Ainda estou a aprender.» Asseguro-lhe que já se exprime muito bem e Eyadou retorque rindo muito: «Aprendo com facilidade porque o meu cérebro está quase vazio. É como um cartão de memória com muito espaço ainda por utilizar.»
Estamos em 2007, Eyadou ag Leche tem 29 anos e é o baixista dos Tinariwen, banda tuaregue hoje universalmente conhecida. «Sou um guitarrista que está a aprender a ser baixista», afirma, antes de informar: «Hoje vou fazer-vos um jantar à maneira do deserto.»A conversa decorre numa carrinha Mercedes de nove lugares, que a banda utiliza para as suas deambulações na Europa. Nela vão a todo o lado e foi com ela que foram ao aeroporto de Orly esperar os três jornalistas portugueses que convidaram para ir jantar com eles a Pontoise, localidade nos arredores de Paris.
O apartamento onde vão decorrer o jantar e as prometidas entrevistas pertence à namorada de Eyadou. É um lar modesto e a sala parece o interior de uma tenda nómada, com o chão coberto por tapetes coloridos, almofadas e colchões tão finos que mais parecem esteiras. É aqui que durante alguns dias vão viver e ensaiar, como se estivessem na sua terra, em Kidal, no Leste do Mali, não muito longe da Argélia e da Nigéria.
Mal entramos no apartamento, um dos quatro colegas de Eyadou começa a preparar um chá verde que nos oferece pouco depois. Durante as várias horas que ali vamos permanecer, conversando e ouvindo-os ensaiar, alguém estará a fazer chá em permanência. Um chá proveniente da China, que preparam fortíssimo, com demasiado açúcar, e que beberricam constantemente. Como estamos ainda no Ramadão (termina dia 15), em período de jejum portanto, nem todos bebem. Embora todos sejam muçulmanos, só dois dos cinco membros cumprem o preceito. Por causa do jejum, e das entrevistas que prometeram dar, o jantar será servido bem tarde, perto da meia-noite. Tal como prometido, Eyadou preparou um arroz de cabrito, regado com manteiga de cabra, e uma entrada constituída por pedaços de fígado grelhados, tâmaras, azeitonas e pão árabe.
Entretanto, informaram-nos que Ibrahim ag Alhabib, o lendário fundador dos Tinariwen ficou no seu país e não se juntará ao grupo antes de Dezembro. «Está doente e cansado», dizem-nos. Também a nova cantora não pôde vir, por causa de uma complicação com o visto para o espaço Schengen. Na ausência do líder histórico, não há porta-voz oficial, pelo que cada um dos jornalistas poderá escolher o seu interlocutor. A minha escolha recaiu natiralmente em Eyadou, o mais expansivo do grupo (o terceiro a contar da esquerda na fotografia do grupo).

A origem dos Tinariwen parece uma lenda. O grupo foi criado nos anos 1979 e 1980, num campo militar da Líbia, por Ibrahim, Alhassan e Intayeden, que faleceu entretanto. Na Líbia preparavam-se para uma guerra?
A ideia era mudar o sistema, mas não forçosamente pelas armas. Quando se deu a rebelião dos tuaregues, em 1990, e os Tinariwen partiram para o exílio, eu fui atrás deles com o meu pai. Os Taghreft Tinariwen eram, já nessa altura, mais do que um grupo musical, uma verdadeira associação cultural com um objectivo muito forte...

Fazer a revolução?
Encontrar uma paz duradoura. Éramos (e somos) demasiado pobres para fazer uma revolução armada ou entrar numa guerra. O que queríamos era pagar menos impostos e impedir que envenenassem os nossos poços, como chegaram a fazer.

A vossa vida é melhor agora?
É uma vida de sofrimento, uma existência de pobres. Na nossa cidade, que conta com 40 mil habitantes, não há um hospital, nem estradas alcatroadas. A herança é muito pesada. Ao mesmo tempo que se preparavam para combater, os Tinariwen criaram um estilo musical para promover a nossa causa e chamar a atenção para os nossos problemas. É o que continuamos a fazer e por isso estamos aqui. Foi assim que nos tornámos os porta-vozes do nosso povo e da nossa cultura, pois sem música não teríamos nada. Os antigos rebeldes que se tornaram militares ajudam-nos com material, e com tudo o que podem para que a nossa mensagem chegue a todo o lado. Não só às outras regiões do Mali, mas o mais longe possível. No princípio, essa mensagem era transmitida unicamente através da poesia, depois juntámos uma guitarra e mais tarde outras guitarras e a poesia fez-se canto. Foi assim que nasceu a nossa música, no exílio. Essa música era gravada em rádio-gravadores muito rudimentares e enviados a todos os tuaregues no Mali, na Argélia, na Nigéria, por todo o lado. Porque muita gente não tinha consciência do que se passava connosco. Ao ouvir a nossa mensagem, muitos jovens vinham ter connosco para se juntar ao movimento.

E quando rebentou a rebelião, em 1990, muitos tinham uma arma numa mão e uma guitarra na outra...
Na verdade, nunca, até hoje, pedimos o que quer que fosse ao governo, nem a ninguém. E muito menos queremos colonizar o Mali. O que não queremos é continuar a ser esquecidos por toda a gente. Não somos nem estátuas nem animais que se visitam. Queremos que nos deixem viver a nossa vida com dignidade e prazer. Queremos partilhar o Mali com os outros povos do Mali, em pé de igualdade. Partilhar o açúcar, a água, os bens essenciais. Não pedimos nada demais.

Quando dizem que vocês tocam rock'n'roll, o que acham disso?
Gostamos sobretudo de saber que nos ouvem no estrangeiro, pois, mesmo que os tuaregues desapareçam um dia, ficará qualquer coisa para os lembrar. Através dos discos e dos concertos, as pessoas saberão que existiram homens que passaram pela Terra e o que carregavam nos seus corações. Através da nossa música procuramos falar a toda a gente e estamos com todos, com o blues, o rock, o jazz, pois tudo isso se pode encontrar no deserto. Mas temos um estilo que é só nosso a que chamamos «assouf». «Assouf» é uma palavra intraduzível. É um sentimento muito particular, uma nostalgia amorosa, uma solidão. Algo que não tens, que talvez nunca chegarás a ter, talvez porque é tão simples e tão evidente que estás sempre a ultrapassá-lo. Não sei. Mas é essa a essência do nosso estilo.

No entanto, são várias as influências que se ouvem nos vossos discos.
Ouvimos muita música e não somos imunes a influências, até porque queremos que a nossa música seja universal.

Agora o vosso estilo é copiado, imitado e influencia um número cada vez maior de seguidores.
Sim, até grupos europeus já soam como nós ou são influenciados pela nossa maneira de tocar. Isso dá-nos muito prazer, é claro, até porque há artistas famosos a tocar as nossas músicas ou a citá-las explicitamente. Isso prova que fizemos um bom trabalho, que tínhamos algo de novo para dar ao Mundo. Também eu fui influenciado por artistas como Jimi Hendrix ou Santana.

Dizem-se também impelidos pelo «espírito do deserto». Como definirias esse espírito?
É um espírito amplo, calmo, aberto. É como um ambiente bem vivo dentro de nós, que quando sai cá para fora jorra como um ribeiro.

Vocês têm andado pelo mundo inteiro: Europa, Estados Unidos, Japão... A tua percepção do Mundo deve ter mudado, mas também a percepção do teu próprio mundo e do deserto em particular.
Nestes últimos tempos, efectivamente, vi muitas culturas diferentes, muitos modos de viver. Percebi como cada povo protege o que é seu, como lida com o seu governo e como o governo, em muitos países, ouve os cidadãos. E tenho inveja. Muitas das coisas que vi gostaria que existissem também no meu país e que o meu povo tivesse acesso a elas. Mas também me apercebo do que temos de bom e único e quando viajo só penso em regressar a casa para beneficiar de coisas que só encontro no meu território. Há muitas maneiras de viver e também sei que há povos no mundo que sofrem mais do que nós. Nós podemos sofrer de sede, mas outros sofrem de males bem piores. Não temos quase nada, mas somos livres de viver como queremos. Há países muito ricos onde as pessoas são muito mais infelizes do que nós. Entre os tuaregues, toda a gente se entreajuda. Se começas a construir uma casa, aparecem logo os vizinhos com tijolos e areia para te ajudar. O nosso povo é muito corajoso. Infelizmente há pouco para fazer, faltam os tijolos e falta tudo. Acredito que as coisas possam melhorar. Nomeadamente através da música. Actualmente já não precisamos ir para campos militares, de partir para o exílio. Progredimos alguma coisa.

Como achas que a música dos Tinariwen vai evoluir?
A nossa música não pode mudar. Quando procuras introduzir-lhe um elemento novo ou novas melodias, ela transforma-se noutra coisa. Recusa-se a mudar.

Temes que o vosso sucesso actual acabe um dia?
Acho que ainda só temos 50 por cento do sucesso que podemos vir a obter. Na minha opinião, todos os que ouviram a nossa música foram contaminados por ela. Mesmo que o grupo acabe, acabarão sempre, mais tarde ou mais cedo, por voltar a ouvir os discos e a encantar-se com a nossa música. Resta-nos agora contaminar os outros 50 por cento que ainda não nos ouviram. É por isso que continuamos a trabalhar no duro e a viajar pelo mundo.

O sucesso tem vantagens, mas também alguns inconvenientes.
É verdade. O sucesso trouxe-nos uma grande responsabilidade. Há um provérbio tuaregue que diz: «Quando agarras as orelhas de um leão, nunca mais as podes largar». Se as largas, ele devora-te. É assim que me sinto: agarrado às orelhas de um leão.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Tinariwen


Amam Íman
Independiente, 2007

Pat Conroy dizia que «sem música, a vida é uma viagem pelo deserto». Para os tuaregs, que vivem no deserto, a música a vida é uma viagem pela música. Para eles, a água é tão importante como a água, que tanta falta lhes faz. O novo disco dos Tinariwen chama-se, precisamente, Amam Íman que, na sua língua, significa «água é vida».
Amam Íman é o terceiro disco do grupo e, sem dúvida, o mais conseguido. Não porque se revele mais sofisticado e bem produzido do que os anteriores, mas porque os membros da banda se tornaram melhores músicos (sublimes os solos das guitarras) e porque souberam substituir a urgência de outros tempos por uma maior profundidade no tratamento das canções que se inspiram na tradição, mas revisitando-a à luz dos blues e do rock’n’roll. Como resistir a cocktail tão convidativo? Impossível. O encanto funciona por demais, basta fechar os olhos para nos imaginarmos nas costas de um dromedário a caminho de um oásis. E como estamos necessitados de oásis!
Não é necessário conhecer a história dos Tinariwen para apreciar a sua música envolvente e hipnótica, contudo seria um pouco como perder o fio à meada. O grupo tuareg - cujo nome vem da expressão «taghreft tinariwen» que quer dizer «a edificação do país» em tamasheq -, nasceu num campo de treino para guerrilheiros na Líbia de Kadafi, em 1984, enquanto os seus membros aprendiam a manejar todo o tipo de armas para se vingar da repressão que conduziu o seu povo ao exílio nos anos 60. Nos intervalos dos exercícios militares, graças às suas guitarras e canções, acabaram por se tornar consciência colectiva e porta-voz de uma cultura que teimava em renovar-se e fazer-se conhecer pelo mundo. Foi o grupo francês Lo’Jo quem descobriu os Tinariwen e os deu a conhecer à Europa, onde rapidamente se tornaram num grupo de culto (em 2005 foram distinguidos com um dos famosos prémios da BBC World, que Mariza também já recebeu).

(Ler entrevista com um dos membros da banda em jorgedelimaalves.blogspot.com)