
Amélie Poulain conheceu realmente um destino fabuloso, tendo-se tornado no filme francês com maior sucesso de sempre, inclusive no difícil território norte-americano. Graças a ele, milhares de pessoas por esse mundo fora descobriram o universo musical de Yann Tiersen, um bretão com formação clássica que, para além de compositor, é um verdadeiro homem-orquestra (se repararem na ficha técnica da famosa banda sonora verão que Tiersen toca carrilhão, banjo, guitarra, mandolim, clavicórdio, vibrafone, acordeão, baixo e piano de brincar, pelo menos).
A sua biografia diz-nos, aliás, que começou a estudar música aos seis anos e que, tendo nascido em Brest, a 23 de Junho de 1970, Tiersen cresceu em Rennes, onde aprendeu a tocar piano e violino. Mais tarde frequentou três conservatórios de música, Rennes, Nantes e Boulogne, tendo depois participado em diversos grupos rock (nessa altura, era grande fã dos Joy Division).
La Valse des Monstres, o seu primeiro álbum, publicado em 1995, já tem indiscutivelmente a sua «griffe», mas passou quase despercebido, tal como o segundo, Rue des Cascades, editado em 1996. Le Phare, publicado em 1998, é o primeiro sucesso e no ano seguinte saem dois CD: Tout Est Calme e Black Session, gravado ao vivo com os grupos The Married Monk e Têtes Raides, mas também com cantores como Dominique A e Neil Hannon, dos Divine Comedy. Hannon reaparece, de resto, em L'Absente, publicado em 2001 com as colaborações de Lisa Germano e 43 membros da Orquestra Sinfónica de Viena, para além de um quarteto de cordas.
Da sua música, diz-se que evoca o circo, as festas populares da Bretanha e o «music-hall», mas também as obras de Nino Rota, Michael Nyman e Erik Satie. Já as comparações com o catalão Pascal Comelade (que como ele recorre a instrumentos de brincar e a um imaginário musical muito parecido) são menos bem vistas pelo bretão, que avisa: «Ele brinca com a história do rock, faz muitas versões. Não tem nada a ver com o que eu faço». Como quem diz, eu sou um verdadeiro compositor, ele um simples autodidacta. Uma coisa é certa: para além da sua dimensão onírica, quase surreal, a música de Yann Tiersen é, à sua maneira, muito particular, a quinta-essência do (melhor) espírito francês, conjugando com sofisticação e algum sentido de humor, romantismo exacerbado e um real espírito de aventura.
Conversei com Yann Tiersen quando passou por Lisboa para um concerto na Aula Magna, em 2002. Aqui fica um excerto dessa conversa.
Começou a estudar música aos seis anos. Os seus pais queriam que fosse músico?
Não, eu é que quis ser músico. Os meus pais iam frequentemente a concertos de música clássica e por vezes levavam-me também. Fiquei muito impressionado pelos violinos, pelo espectáculo de todos aqueles arcos em movimento, produzindo aquela música fantástica. Acho que foi a primeira vez que desejei muito ser músico.
Apesar disso, começou a aprender a tocar piano e não violino.
Era pequeno demais para tocar violino. O piano toquei aí até aos 12, 13 anos e parei porque comecei a interessar-me por outros tipos de música.
Nomeadamente o rock. No entanto, a sua biografia afirma que frequentou três Conservatórios de música diferentes.
Mais tarde, voltei a experimentar a música clássica episodicamente e quis ter aulas de composição e direcção de orquestra. Mas nunca frequentei um Conservatório mais de três ou quatro meses, pois acabava sempre por ter a ideia que estava a perder o meu tempo.
Ao mesmo tempo participava em grupos de rock. Que intrumento tocava?
Depende, teclados, guitarra. Tocávamos em bares, imitávamos os grupos na moda. Depois separámo-nos, cada um foi para seu lado. Comecei a trabalhar sozinho com samplers. Gostava muito de trabalhar com samplers de instrumentos acústicos. Pouco a pouco comecei a compor e a tocar eu próprio o que escrevia. Comecei então a convidar outros músicos para tocar comigo.
Quando é que começou a escrever para teatro e curtas-metragens?
Nunca escrevi propriamente para teatro ou cinema. Sempre fiz um pouco batota, porque quando me pedem música para uma peça ou um filme, vou buscar temas que já estão escritos.
Continua a fazer isso, de resto, pois é o caso da própria banda sonora de «Amélie Poulain»… Gosta de dar concertos?
Sim, imenso. Para mim, os concertos são um pouco a recompensa pelo facto de ter gravado um disco. Não os sinto como uma obrigação, como alguns músicos, mas como um recompensa, um prazer.
Toca tantos instrumentos, qual é o que prefere?
Depende, tenho fases. Gosto de variar. Em casa componho ao piano ou à guitarra, passo de um instrumento para o outro, quando ando a experimentar ideias. Algumas músicas nascem num instrumento de brincar.
Por outro lado, quem toca tantos instrumentos deve ser muito exigente com os seus músicos…
Pelo contrário. Não me considero como um instrumentista, sei que a minha técnica não é perfeita. Há instrumentos que não domino, mas que por outro lado me dá um grande gozo tocar.
Também não se considera, provavelmente um vocalista. É por isso que convida diversos cantores para cantar algumas das suas canções?
Gosto que as minhas canções sejam bem servidas e se penso que alguém vai cantar uma das minhas canções melhor do que eu, não hesito em convidá-lo.
A propósito das suas influências, cita-se Michael Nyman, Nino Rota, Erik Satie...
As influências são sempre inconscientes. Não posso dizer se fui inflenciado especialmente por este ou aquele. Erik Satie, por exemplo, admiro muito a sua personalidade, mas nunca ouço a sua música. Raramente a ouvi. Quanto ao Nino Rota é a mesma coisa: conhecia os filmes do Fellini, mas só descobri verdadeiramente a música de Nino Rota quando começaram a dizer que eu era influenciado por ele. De resto, nunca presto muita atenção à música dos filmes, prefiro vê-los como um todo.
Sei que também não gosta de ser comparado a Pascal Comelade. Conhece-o pessoalmente?
Cruzámo-nos uma vez ou duas. Mas o que fazemos é muito diferente. Gosto do que ele faz, mas acho que a minha música não tem nada a ver com a dele. Os jornalistas começaram a dizer isso porque ambos recorremos a instrumentos de brincar ou instrumentos que, por vezes, nem musicais são. Mas é tudo.
É inevitável falar do sucesso do Amélie. Participou no projecto logo de início?
Não, foi um acaso. Jean-Pierre Jeunet devia trabalhar com outro compositor, mas ouviu um dos meus discos no carro de um amigo e mudou de opinião. Telefonou-me e foi assim.
Em que fase estava o filme? Ainda estava em rodagem?
Já estava a ser montado. E as primeiras imagens que vi do filme já tinham a minha música, pois ele começou logo a experimentar coisas. Eu trabalhava na altura no meu disco L’Absente e fiquei muito feliz por poder participar também na aventura Amélie. Tanto mais que Jeunet é como eu, uma pessoa muito instintiva que faz as coisas sem pensar muito nelas. Não gosto de trabalhar com realizadores autoritários, que estão habituados a mandar nos actores e ou que gostam de intelectualizar muito as coisas. Geralmente, não percebem nada de música, nem sabem falar dela, até porque a música não é uma linguagem. E também não gosto que a música seja remetida para um papel puramente ilustrativo. Por isso, é muito raro eu dar-me bem com realizadores de cinema.
Já aconteceu pedirem-lhe para escrever música para cenas muito concretas?
Sim, mas nunca o faço. Não consigo sequer fazê-lo. Digo sim, sim, vou fazê-lo, mas depois vou procurar música já escrita, porque quando componho não penso em nada de concreto. Preciso de não estar a pensar em nada, para que as ideias vão surgindo, quase de maneira inconsciente.
Quando escreve, quer comunicar alguma coisa ou apenas criar algo belo?
De belo, não, não é o meu objectivo. Procuro criar algo que me faça sentir bem, que se pareça com aquilo que eu sou.
A sua música soa nostálgica...
Nostálgica, não... enfim, não sei, no fundo não sei como soa. Em todo o caso, não estou nada voltado para o passado.
A nostalgia não tem a ver forçosamente com o passado. Também podemos falar de uma nostalgia do futuro.
Ou do presente, estou de acordo. Digamos que a minha música permite-me sentir-me mais presente a mim mesmo.
A sua música é muito intrsopectiva. Mas no princípio a sua música era quase só instrumental e agora escreve cada vez mais canções.
Tenho consciência que as minhas músicas podem soar muito abstractas e uma canção permite-me esclarecer melhor as coisas. Contudo, a escrita de uma canção processa-se do mesmo mdo: parto de uma única ideia, uma frase na maior parte das vezes, e o resto vem por acréscimo, sem grande esforço consciente.
Gosta de trabalhar com outros músicos? De sentir que outros músicos entram no seu universo musical?
Gosto muito da interactividade, do intercâmbio musical. Acredito no trabalho continuado, nas colaborações que duram algum tempo. Mas não demasiado também. Ao fim de algum tempo sinto necessidade de mudar de parceiros.