quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009
Adriana Calcanhotto
Cantada
BMG, 2002
O disco já estava meio gravado e o repertório até era, segundo a sua autora, «prazenteiro, bonitinho». Os arranjos também não estavam mal, «bem agradáveis, por sinal». Um belo dia, porém, alguém dá a ler a Adriana Calcanhotto um poema de Joaquim Pedro de Andrade, intitulado «Por que você faz cinema?». Foi como um soco no estômago. De repente ela percebe que «não tinha muito risco naquele disco que estava a gravar».
O pequeno texto em verso era, afinal, uma resposta a um inquérito do jornal parisiense «Libération». À questão «Pourquoi filmez-vous?», o cineasta respondia: «Para chatear os imbecis, para viver à beira do abismo, para correr o risco de ser desmascarado pelo grande público.» Adriana reconheceu-se plenamente naquelas palavras. Não, definitivamente, ela não queria fazer um disco bonitinho, queria «mostrar o nunca visto, o bem, o mal, o feio e o bonito». Porque a sua música «não quer ser útil, não quer ser moda, não quer estar certa», como diz outra canção que escreveu depois de musicar o poema de Joaquim Pedro, que se tornou no primeiro tema do novo álbum. Deitou, pois, fora o disco que estava a fazer e recomeçou tudo de novo, «agora com menos dinheiro e menos tempo». Apesar disso, assegura: «Fui muito feliz fazendo esse disco. Tinha uma liberdade no estúdio incrível, uma combinação de pessoas querendo fazer coisas sem modelos, foi muito legal.» Nasceu assim, em 1994, o seu terceiro disco, A Fábrica do Poema.
Adriana Calcanhotto (com dois tt, por favor), não é, já o terão percebido, uma pessoa convencional. A mãe era bailarina, o pai músico, cresceu no meio de artistas. «Os ensaios do conjunto em que o meu pai tocava se davam na garagem lá de casa. Os carros ficavam na rua porque os instrumentos ocupavam o espaço todo», recorda. «Sempre convivi com músicos, com todo o tipo de artistas. Sempre fui muito incentivada a qualquer expressão artística. Não especialmente a música. Também fiz pintura.»
Meio a brincar, meio a sério, afirma que ainda hoje não tem a certeza de que a música seja a sua principal vocação. Começou a cantar para imitar os seus ídolos, principalmente Caetano Veloso e Maria Bethânia, através da qual descobriu muitos autores de literatura, como Clarice Lispector, que marcou a sua adolescência. Tinha uns 12, 13 anos quando começou a comprar os seus próprios discos. Antes disso, ouvia sobretudo a música dos pais: «Jazz e música erudita, basicamente.»
Como toda a boa adolescente, sonhava ser artista, cantar na televisão. «Fazer mais ou menos isso que eu faço hoje», acrescenta com uma gargalhada. Quase sem dar por isso, a música tornou-se no seu ofício. «Continuo a querer fazer outras coisas, no entanto, e hoje em dia faço-o dentro do meu trabalho. A música viabiliza.» Faz, por exemplo, as capas dos discos e não prescinde de ser a directora artística dos seus espectáculos.
A primeira aparição em público de que se lembra, «tocando uma música que era minha, tocando o violão», foi numa festa de final de ano do Colégio. Andou nervosa todo o dia, com um nó no estômago, mas quando se sentou no banco e começou a tocar, parecia que tinha feito aquilo a vida inteira, sentiu-se completamente à vontade. «Como eu me sinto hoje em dia», remata.
Com um sorriso malicioso, esclarece que o seu primeiro contrato, para cantar num restaurante, foi graças a uma mentira. O dono do local perguntou-lhe o que fazia na vida e ela respondeu: «Sou cantora.» «Óptimo», retorquiu ele, «estou a precisar de uma cantora para o meu bar». Adriana rapidamente percebeu, no entanto, que «essa coisa de cantar os arranjos iguaizinhos à versão original» não era o que queria fazer. Pouco a pouco, foi introduzindo algumas ideias originais e acabou desenvolvendo espectáculos que já não eram meros concertos. «Já eram 'shows' cuidados do ponto de vista visual, que tinham algo meio-teatral, meio pop.» Fez muitos espectáculos desses, em Porto Alegre, onde nasceu e onde ainda residia na altura. «Alguns desses «shows» tinham características mais rock, outros mais jazz, um pouco de cada coisa.» Porto Alegre depressa começou a ficar pequeno demais para a sua ambição e levou os espectáculos para S. Paulo. Mais tarde, desafiaram-na a fazer o mesmo no Rio de Janeiro. «A primeira vez que eu fiz isso no Rio, deu tudo muito certo. Era para fazer uma noite só e acabei ficando cinco semanas. Assinei um contrato com a editora e nunca mais voltei.»
Não tem, no entanto, muito boas recordações do primeiro disco, Enguiço, que gravou em 1990. «A sensação de gravar um disco foi incrível porque naquele momento não estava pronta para aquilo. Ainda pensei em não aceitar o convite, mas tive medo de me arrepender. Não sei o que teria acontecido, se não tivesse gravado aquele disco, naquele momento.» Adriana acha que é um disco mais do produtor do que dela. «Eu só cheguei ao estúdio para botar a voz, e isso definitivamente não combinava com o que eu queria fazer. Aquela novidade do estúdio intimidou-me um pouco. Conheci muitas pessoas novas, que eu só os conhecia de nome, de ler os créditos nos discos. Foi tudo demasiado rápido.»
A crítica especializada não foi branda. Adriana acha que o disco foi mal lançado. «Foi como se tivesse sido lançada às feras.» Justifica: «Eu acho que essa história de bom-gosto em arte, não é um critério adequado. Na época, no Brasil, tinha que ser tudo muito chique. E Jean Genet não era chique. Chique é um conceito 'fashion', não é um conceito de arte. Eu estava a querer mexer com isso, com as roupas coloridas, mas a ideia não ficou clara. Tinha muito humor nos 'shows' que eu estava fazendo na época, e isso não passou no disco.» «O que eu aprendi com esse disco foi que não se faz um trabalho sem se estar inteiro nele», conclui.
Por isto tudo, «Senhas, lançado dois anos mais tarde, foi uma espécie de vingança. Tinha muito desejo de o fazer e aí tudo muda». Entre os dois discos, teve tempo para pensar, para compor e decidir o que queria. Que colaboradores queria. Por isso, muita gente considera que «Senhas» é verdadeiramente o seu primeiro disco. Mas foi com o terceiro álbum, A Fábrica do Poema, que Adriana se impôs verdadeiramente como uma autora com quem doravante era preciso contar.
Entre 1994 e 1998, não gravou nada. Ela explica: «Tive uma troca de empresário, que foi um processo lento. No meio disso, fiz muitas composições para outros autores e também para mim mesma. E dei muitos 'shows' por todo o país.» Foi também por essa altura que roubaram o seu apartamento. «Levaram todos os meus discos e foi uma coisa que, na verdade, eu pretendia: saber como seria o meu trabalho sem referências, sem passado musical nenhum. Não é possível, mas procurei imaginar como seria se fosse possível. Na verdade, quando me vi fisicamente privada dos meus discos, não foi fácil.»
Em Maritmo, de 1998, Adriana canta Dorival Caymmi, Pedro Luís, Roberto Carlos, para além dos seus próprios temas como «Vambora» ou «Vamos Comer Caetano», dois dos maiores sucessos da sua carreira. Tal como gosta de se «apropriar» das canções dos outros, também gosta de ouvir os outros interpretar os seus temas. «Gosto de perceber que uma canção minha foi 'roubada' por alguém. Porque eu faço a mesma coisa.» Do mesmo modo, gosta dos desenvolvimentos, dos diálogos, de dar continuidade a certas colaborações. Ela mantém diálogos com vários poetas e compositores. Waly Salomão, Péricles Cavalcanti, Arnaldo Antunes são presenças regulares nos seus discos, alguns desde o segundo disco. Faz também questão de chamar a atenção para o trabalho do figurinista dos espectáculos, Marcelo Pires, com quem «desenvolveu uma coisa que a gente vai aprofundando, dividindo as soluções». E acrescenta: «Noutro sentido, por vezes também é muito bom romper.»
Cantada, lançado em 2002 - e pretexto imediato para esta entrevista que decorreu no Rio de Janeiro - Adriana Calcanhotto recorreu a uma nova geração de músicos brasileiros: Moreno Veloso, Los Hermanos, Bossacucanova e Daniel Jobim (neto do lendário Tom). Escolheu-os porque são talentosos e «trabalham com liberdade e humor. Com irreverência e com uma missão artística real. Esses meninos estão procurando novas formas de comunicar com o público, de lidar com a indústria, com os 'media'».
No futuro imediato, Adriana Calcanhotto só vê trabalho pela frente. «O que é óptimo, não tenho que reclamar.» Quando não grava é porque está a compor ou anda em digressão. Mas aqui e ali vai experimentado «coisinhas de poesia, artes plásticas, cinema». Confessa, aliás que o mundo do cinema a atrai particularmente, sobretudo desde que gravou um vídeo-clip («Pelos Ares», que passa regularmente no canal por cabo Sol Música) e percebeu que se sentia muito à vontade em frente das câmaras. «'Set' de cinema é algo que me interessa muito. Fico muito excitada de ver tudo aquilo acontecendo.» Revela ainda que está a preparar um livro, que virá apresentar a Portugal dentro de meses, e que recebeu um convite para musicar um livro para crianças, o que tem muita vontade de fazer. E não nos deixa terminar a entrevista sem recordar que, em Junho, vai fazer 14 espectáculos em Portugal. «Vou à Madeira e aos Açores, um lugar que quero muito conhecer, porque foram os açorianos que fundaram Porto Alegre, a cidade onde eu nasci».
(Este texto foi publicado a 27 de Novembro de 2002, no «Expresso»)