
Foi em 2001 que Vitorino editou Alentejanas e Amorosas. Um álbum cheio de emoções, todo tecido «com a linguagem das baladas e o ritmo da Península Ibérica». Mas também muito influenciado pela América Latina, até porque, compreensivelmente, as idas a Cuba e as digressões com o Septeto Habanero deixaram marcas. A conversa decorreu em Novembro desse ano.
Fala muito de pós-romantismo. O que é isso?
O pós-romantismo é a esperança que eu tenho de se retomar algum romantismo, algum clacissismo da música, ou melhor, no envolvimento melódico da música portuguesa. Se tivermos atenção, todas as melodias já estão feitas. E quem as fez foram os barrocos na transição para o romantismo. Mozart tem lá quase tudo. Começa com Bach, passa por Mozart e depois Beethoven destabiliza o universo melódico do mundo. Este pós-romantismo de que falo é um desejo de melodia, porque o «tecno» é ruído». Quando há melodias elas são dissolvidas.
Muitas das canções deste disco não chegam aos três minutos. E há mesmo duas que nem dois minutos duram.
Uma canção conta uma história e tem um tempo. E nesse tempo temos que dizer o que queremos e ser eficientes. Isso adquire-se com técnica. Na festa do «Blitz», a que assisti, um dos grupos esteve 13 minutos com uma canção. Em inglês, ainda por cima. Eu sou mais telegráfico.
Como é que surge a participação do Hévia neste álbum, ao lado do grupo coral de Pias?
É uma pequena provocação. Quis misturar a cultura visigoda e a cultura judeu-árabe. Isso dos celtas serem do Norte é mentira. A capital dos Celtas era no Sul, em Mérida. A gaita de foles tocava-se em todo o país. Mas ficou lá por cima. E eu fiz uma pequena provocação cultural que é juntar os semitas com os visigodos. A gaita de foles e os bombos são uma coisa de guerra e o cantar alentejano é uma coisa de seda, um rendilhado.
Quem é Francisco Matias Ramos, que assina o tema que dá o nome ao disco e duas outras letras?
O Chico é um amigo da adolescência. Foi ele quem escreveu a letra da primeira canção que compus, por brincadeira, nos anos 60. Chama-se «Fresca Mondadeira». Na altura preparava-me para ser pintor. Vim para a Escola de Belas Artes de Lisboa e cheguei a preparar uma exposição. Mas vivi rodeado de música, através do meu pai, dos meus irmãos, do meu tio, e fiquei muito marcado por isso. Na minha adolescência, ouvi muito Jacques Brel, muita Juliette Greco, e os clássicos franceses do pós-guerra. E ouvi, quase clandestinamente, o José Afonso, o Adriano Correia de Oliveira, o padre Fanhais. Foi nesse tempo que, pela primeira vez, peguei na viola e compus uma canção. Actualmente, o Francisco Matias Ramos é professor da Universidade de Évora.Outra pessoa fundamental no disco é o Ricardo Dias. Os arranjos são dele. O Ricardo é um jovem coimbrão. É Mor de uma República que se chama o Palácio da Loucura. Eu vou muito a Coimbra, desde os anos 60, do tempo dos movimentos estudantis, que eu acompanhei com alguma leviandade. Há muitas pátrias lusas, Coimbra é uma pátria à-parte, onde ainda é possível acontecer, como ontem à noite - vim de lá a correr para esta entrevista - um recital de fados de Coimbra, cheio de malta nova. Com músicos de vinte e poucos anos, acima da média, a tocarem Carlos Paredes. A Escola de Coimbra está a reviver, em contraponto com essa outra escola «tecno», esse romantismo coimbrão, cujo expoente máximo são Carlos Paredes, Zeca Afonso, Edmundo Bettencourt...
No disco fala-se muito de viagens.
Porque sou um viajante. Sempre fui e continuo a ser, mas fora dos circuitos do turismo. Agora trago debaixo de olho Madagascar. Já andei por Bornéu, Malásia, Singapura... Tenho uma grande paixão pelo Oriente, onde as mulheres são muito misteriosas e onde, de certeza, os olhos não são o espelho da alma. Gostava ainda de entrar até Manaus, de fazer o interior brasileiro. Mas começo a perder a energia, até porque viajo rigorosamente sozinho, ainda com mochila.
Tem consciência que este disco se dirige aos fãs de sempre?
A primeira canção, suponho que ela entra na chamada «world-music». É um isco. Com este disco gostava de voltar a chamar a atenção para a música portuguesa. Mas é verdade que a malta nova não sabe quem é o Corto Maltese, nem conhecem a música do Zeca Afonso, que continua de uma modernidade incrível. Na festa do «Blitz», ouvi uma canção lindíssima dos Austin, mas cantada em inglês. O universo melódico deles é português - não conseguem escapar dele -, mas o inglês é mau. Mal dito, mal pronunciado. Imagine que aparecia um grupo inglês chamado Rio Guadiana e cantava fados. De certeza que o faria de uma maneira absolutamente estranha. Os Austin não se apercebem que é essa figura que poderiam fazer se fossem a Inglaterra. Lamento muito, mas desiludem-se. Virem-se. Procurem textos portugueses. Comecem com os sonetos de Camões, que são lindíssimos e acessíveis. Leiam depois o Cesário Verde. Ouçam a Amália. Em três horas poderiam resolver o problema.
Que música ouve ultimamente?
Cada vez ouço menos discos. Mas vou comprando os dos Silence 4 e dos Gift, entre outros, para me manter actualizado. Para manter capacidade de análise. Vejo o «Made in Portugal», acompanho os «tops», vejo os vídeos. Com um olhar profissional e técnico, para saber em que mundo vivo. Em que mundo português vivo. E observo-os muito. Por exemplo, os Clã. É um caminho interessante para a música portuguesa, apesar de bastante anglo-saxónicos nos esquemas. Têm sempre essa nostalgia. Também eles deviam ouvir e ler mais os nossos clássicos.
Como lida com o envelhecimento?
Eu sou um optimista em relação à vida e vou acompanhando o meu corpo até ao seu limite. Era incapaz de fazer como a Lili Caneças, que deixou de acompanhar o seu corpo. A nossa alma tem a dimensão do nosso corpo. Se o esticamos para um lado ou para o outro, a alma não o acompanha. E uma pessoa entra em choque consigo mesmo. Eu tenho alguns segredos. Atiro ao arco, por exemplo. Acalma-me muito e resolvo alguns problemas da infância, porque eu gostava muito dos índios.