
Nascido há 57 anos na província de Bengo (Angola), filho de uma mãe zairense e um pai angolano, Bonga iniciou-se na música ao lado do pai, funcionário público que tocava acordeão. Excelente atleta (chega a ser recordista de Portugal nos 400 metros), veio viver para Lisboa em 1965. Mas como militava clandestinamente contra o colonialismo português, Bonga acabou por ver-se obrigado a fugir para a Holanda, em 1972. É nesse país que publica o seu primeiro disco, Angola 72. Gravado em oito horas num pequeno estúdio, na companhia de três amigos, o álbum é um libelo contra o colonialismo, cantando a humilhação e o exílio. Todos os africanos exilados se reconhecem nele e o disco, que se torna num imenso sucesso, chega clandestinamente a Angola, tornando Bonga num verdadeiro herói popular. Dois anos mais tarde, o músico grava um novo longa-duração em Paris, Angola 74, que confirma o seu imenso talento e o seu novo estatuto de «poeta nacional de Angola».
Com a Revolta dos Cravos, a 25 de Abril de 1974, Angola acaba por obter a independência por que tanto lutou, mas as esperanças de Bonga, e da maioria dos seus compatriotas, não tardam a cair por terra com a guerra civil que opõe a UNITA e o MPLA. Por isso, o cantor volta para Lisboa. Ele que começara por se chamar Barceló de Carvalho, e depois optara por um nome africano, Bonga Kwenda, decide chamar-se então Bonga Barceló de Carvalho. Para sobreviver canta em bailes e festas, mas a sua carreira não consegue descolar, em parte porque, segundo ele explica, os produtores «sonhavam fazer de mim uma espécie de Júlio Iglésias africano».
Quando o entrevistei, Bonga estava feliz e orgulhoso. Em vésperas de fazer 60 anos, era finalmente famoso. Realmente famoso. Pelo menos em França, onde os seus dois primeiros álbuns são considerados como verdadeiras obras-primas, precursoras da vaga de «world music».
Mulemba Xangola, publicado nesse ano de 2001, demonstra que a deliciosa voz rouca e profunda de Bonga amadurecera bem, e que não perdera nenhuma das qualidades que o tornaram famoso, nem como compositor nem como cantor. Todas as suas canções continuam a ter um fundo de crítica social, descrevendo a realidade quotidiana dos angolanos, dos refugiados e dos bairros da lata, como no tema intitulado «Ngui Tename» que diz: «Da janela do muceque/ vejo muita confusão/ tem parente bué contente/ na candonga de ocasião.»
«O que digo é simples mas difícil de ouvir: a África está a pagar a dívida colonial, mas também a má gestão política dos dirigentes africanos», afirmou ele um dia numa entrevista a uma revista francesa. Bonga continua um revoltado, mas percebeu que a ira e a violência não são solução. Continua a acreditar, contudo, na força da palavra e da razão, pelo que a sua música continua a acreditar na sua capacidade para abalar algumas consciências. Por isso, mas também por razões puramente musicais, mesmo com as suas pontualíssimas veleidades zouk, Mulemba Xangola é, pelo menos para mim, um dos melhores e mais importantes discos de música africana dos últimos anos.
A minha conversa com o Bonga, que fala de si sempre na terceira pessoa, decorreu em Paris depois de um concerto memorável no Olympia, em Novembro de 2001.
Do seu ponto de vista, como é que correu o concerto?
Foi óptimo. Quem me dera que os embaixadores e os políticos estivessem todos lá. Estou a pensar, sobretudo, nos que gerem as questões relacionadas com a solidariedade e a cooperação, pois demos um grande exemplo, ontem à noite. Mais do que nunca, senti-me embaixador e representante não só de Angola mas também, ou sobretudo, da diáspora de expressão portuguesa. Pelo menos, eu senti essa responsabilidade.
Como é que se sentiu a actuar numa sala tão mítica como a do Olympia?
Já tinha ali actuado, no âmbito de outro espectáculo, com vários artistas. Toquei, por exemplo, com um grupo antilhês da Martinica, os Malavoix. Ficámos seis dias seguidos. Mas o Bonga fazia só a primeira parte. Desta vez já vim como cabeça de cartaz e, claro, foi muito diferente a sensação.
Uma verdadeira consagração.
Sem dúvida. E fiquei contente por ter visto tanto francês na sala, o que é muito bom.
Para este espectáculo, reforçou a sua banda com um percussionista muito bom e um flautista americano também excelente. Porquê um flautista?
Por causa da música nostálgica de Angola. A flauta consegue dar aquele travo, aquela dor que eu associo à música da minha terra.
Se tivesse possibilidade, que outros instrumentos acrescentaria ao grupo?
Um instrumento que já usámos muito em Angola, noutros tempos, que é o acordeão. Nós temos um ritmo específico em Angola, a rebita, que é acompanhado pelo acordeão e o instrumento que eu toco, uma espécie de reco-reco. Quero repor esse instrumento na minha música e não apenas na rebita.
Gosta mais dos espectáculos ao vivo ou do trabalho de estúdio?
Cada coisa tem a sua particularidade. Aliás, eu tenho a tal característica de não saber nem ler nem escrever música, mas ser capaz de dizer ao músico exactamente o que quero. Como é que isso acontece? É um mistério. O que é certo é que foi o facto de ter vivido em Angola e ter tido oportunidade de aprender com os velhos, que fizeram de mim o artista que eu sou.
Para além dos Kapa Dech, que ontem também actuaram no Olympia, conhece outros músicos moçambicanos?
Eu tenho que puxar daqui as orelhas aos músicos moçambicanos, como irmão mais velho que sou. Eles ficaram muito influenciados com a música sul-africana e todos os artistas que vieram cá para fora foi para cantar «Love Me, Tender», «I Can´t Stop Loving You» e essas coisas todas. Ora eles têm uma música tão linda que não estão a tocar e a gravar. Para além disso, têm o privilégio de falar as línguas naturais de Moçambique, o que não acontece com os angolanos. Em Moçambique há um grande compositor que é o Costa Neto, toca tudo, trombone, saxofone, guitarra, baixo... mas que está um bocado apagado, a viver em Portugal. Quando ouço os Kapa Dech, lembro-me o que o Paul Simon deve muito a essa música zulu que se toca naquele lugar específico de Moçambique. E que eles têm que mostrar ao mundo. Isso vai acontecer, mais dia menos dia, tenho a certeza. Aliás, a Lusáfrica está a fazer um trabalho notável na divulgação das particularidades musicais de cada região. Neste momento, mal se dá por isso, mas vai ser bonito de ver daqui a uns tempos.
O que é que representa, hoje, para si a lusofonia?
A lusofonia é, antes de mais nada, a vivência das pessoas. A convivência entre nós. É preciso cada vez mais que o cabo-verdiano vá a Moçambique, como o moçambicano deve sair e vir a Angola. Nós mal nos conhecemos, esse é que é o problema. Com a música temos possibilidade de conhecer a cultura do outro. Para mim a lusofonia é isso, prioritariamente. Infelizmente, os políticos lixaram-nos. Com as suas ideologias só complicaram tudo.
O Bonga tem gravado imenso, mas só agora com «Mulemba Xangola» é que está a ter êxito. Como é que explica isso?
Tal acontece porque só este disco é que foi trabalhado convenientemente. Há outros que gravei que foram um bocado meia-bola e força, tenho que o reconhecer. Neste tive tempo e condições para prepará-lo a sério, para trabalhá-lo em profundidade... Não sou do tipo de pessoas que fala de pimbas. Para mim só há músicas que ficam e outras que não.
É inevitável falarmos em questões políticas. Sei, por exemplo, que é muito crítico em relação à democracia...
Os portugueses fizeram uma revolução maravilhosa, sem mortos, ou quase, e com cravos nos canos das espingardas, mas os políticos portugueses deviam, tal como os árbitros no futebol, ser capazes de mostra cartões vermelhos quando acontecem certos actos que podem pôr em risco a vida até do seu próprio povo. Porque razão Portugal assiste impávido à deterioração das situações nos países de que foi colonizador, e, portanto, responsável? Fui educado segundo outros princípios. Antes da importação dos livros marxistas e outras ideologias, nós, africanos, não tínhamos lições a receber de ninguém sobre solidariedade e boa convivência. Degenerámos em matéria social. Isto não tem nada a ver com saudosismos do tempo da colonização, como alguns querem fazer querer. Tem a ver, sim, com a vivência dos africanos que eram seres dignos, com princípios, e hoje, por vezes, não são.
Quando houver democracia real em Angola, encara a possibilidade de vir a ter algum papel político?
Perguntam-me sempre isso, mas se as pessoas estão a pensar que o Bonga fala assim para obter um cargo político, enganam-se redondamente. Nunca vou fazer política. Nem pensar. Quero sim contribuir para que a situação melhore. Penso acompanhar a par e passo com a minha música a evolução política e social no meu país.
Está optimista quanto à possibilidade da guerra em Angola acabar a curto prazo?
Isso passa por engrenagens terríveis. Passa pelas multinacionais, pelos americanos. É uma chatice, mas vai ter que ser o patrão a dizer: «Chega, já roubei muito».
E acha que isso vai acontecer?
Não, não vai. Por isso é que digo que nós não temos visão nenhuma. Porque a nossa maior visão devia ser em prol do nosso povo, da nossa gente. Devíamos ser capazes de parar um bocadinho e deixar de mentir. Há mentiras quotidianas que tomam formas terríveis. A verdade é que não estamos a ser sérios. E com esta história da mundialização, em vez de entrarmos pela porta da frente, com o nosso petróleo e os nossos diamantes, vamos entrar pela porta do quintal e vamos ser os últimos. Não podemos permitir que isso aconteça.