
João Paulo Esteves da Silva nasceu em Lisboa, em 17 de Maio de 1961 numa familia de músicos. Tendo começado a tocar piano com quatro anos de idade estudou música na Academia de Santa Cecília, no Conservatório Nacional de Lisboa e, a partir de 1984, em Paris como bolseiro do Governo Português. É um dois melhores pianistas portugueses e entre os seus diplomas contam-se o Curso Superior de Piano com 20 valores. Muito eclético, é, para além de um notável pianista, excelente compositor e inesgotável improvisador. A sua actividade estende-se do jazz à música popular portuguesa, passando pela clássica e o fado. Esta entrevista teve lugar no ano 2000, quando o pianista lançou Almas, um álbum a solo onde está bem patente todo o seu talento.
O João Paulo aprendeu música «quase sem dar por isso», porque a mãe (assim como os dois avós maternos) era pianista. Foi assim?
Sim, mas o «chamamento da música» só surgiu verdadeiramente por volta dos 12, 13 anos, quando comecei a interessar-me, com os amigos, por grupos chamados de rock sinfónico, como os Yes e os King Crimson. Nessa altura descobri que me dava muito jeito saber tocar piano. Mais tarde senti-me atraído pela música de Carlos Santana e talvez tenha sido por aí a minha aproximação a sonoridades mais jazzísticas. O jazz, para os músicos de rock, tinha aquela aura de música um tanto ou quanto mais complicada. Portanto, para aqueles que têm sede de aprender, mais não seja pelo desafio que é, atrai. De repente, a música ocupava a quase totalidade do meu tempo. Lembro-me que deixei de ir à praia para ficar em casa a estudar e a praticar música.
Já estava «agarrado»!
Completamente. Nessa altura voltei a estudar, de uma forma mais académica. Na Academia dos Amadores de Música, na Academia de Santa Cecília e, logo a seguir, no Conservatório.
Entretanto, frequentava também o Hot Clube?
Aí acabei por ser convidado pelo Pedro Wallenstein para tocar piano eléctrico numa banda de jazz-rock, chamada O Sexo dos Anjos. Foi o meu primeiro grupo «a sério». Rapidamente, comecei a tocar com outros músicos que também frequentavam o Hot, nomeadamente com o Zé Eduardo.
A par disso, desenvolveu uma série de colaborações com «poetas cantores» como Fausto, José Mário Branco e, principalmente, Sérgio Godinho, com quem gravou alguns discos. E, de repente, vai para França.
À partida, foi por causa dos estudos. Mas também por uma necessidade urgente de sair daqui. A sensação, na altura, era de insatisfação. Alguns portugueses têm esta necessidade, quase étnica, de sair. Há qualquer coisa que aqui não se resolve. Ou só se resolve indo dar uma grande volta. O pretexto foi a possibilidade de ir estudar com um professor nos arredores de Paris. Obtive uma bolsa da Secretaria de Estado da Cultura e lá estive durante três anos. Aí surgiu a necessidade de voltar a fugir, já não de Portugal, mas de tudo. De tudo o que se esperava de mim na altura, que era o de enveredar por uma carreira de concertista, por exemplo. Não sabia ainda qual era o meu caminho, mas esse não era certamente. A solução que encontrei foi deixar a cidade grande e ir viver para o campo, na Normandia. Fazer uma espécie de retiro eremítico. Não total, porque a cidade tinha uma escolinha onde eu tocava, de quando em vez, com uns amigos. Entretanto, casei-me com uma francesa e vivi no seio de uma família francesa que me ajudou a descer aos infernos, em busca do meu caminho.
Musicalmente, o João Paulo já estava dividido entre vários mundos...
É um bocado o drama do português, que normalmente tem jeito para diversas coisas. Isso pode tornar-se trágico. Há uma solução que é de facto não fazer nada - uma solução que é, infelizmente, bastante comum entre nós - para, mais tarde, ter a satisfação melancólica de recordar tudo aquilo que se poderia ter feito e não se fez. «Que génios que nós éramos. Mas esta vida é um fadinho, não fazemos nada, pois é, pois é!» A França tem a característica oposta: é uma cultura fina, que quer dizer também estreita. É uma cultura onde não há de facto muitas possibilidades. Mas as possibilidades que há são extremamente dinâmicas. É um país onde as pessoas aprendem a concentrar-se em determinado objectivo e andar esse caminho fora. Para um português, tudo são caminhos e este não é mais importante do que aquele. Houve uma altura em que eu, finalmente, me senti português e em que isso já não me doeu.
Foi, pois, um exílio, voluntário, de sete anos?
Oito anos, mesmo. Digamos que comecei a regressar a partir do sétimo ano. Primeiro, teve de haver um regresso à língua materna, pois em França só me dava com franceses e comecei a esquecer a minha própria língua. Quando me apercebi de que estava a ter dificuldades com a língua portuguesa, foi uma sensação de perder a alma. Quase entrei em pânico e comecei a encomendar livros à família, o mais possível. Passei várias horas por dia a ler em voz alta, para recuperar e cultivar o português. E depois a música. Não tenho explicação para isso, mas há uma fase em que o músico sente que ainda está à procura e a sua música tende a ser à maneira deste ou daquele. E depois há uma altura em que é a própria música que nos começa a empurrar. Agora é ela que me diz para onde é que eu devo ir. Esse é que é o caminho normal, ou ideal, mesmo que o preço seja duro. Para qualquer músico ou qualquer artista. A partir daí, há uma sensação de paz interior. Uma sensação de segurança. É como se houvesse uma fonte tapada por uma pedra, de onde só escorria um fio de água, e de repente o pedregulho salta e a fonte jorra. Depois é uma questão de processos de irrigação, que podem ser mais ou menos lentos ou trabalhosos. O facto de saber que há água, é uma grande segurança. A partir daí deixou de haver problemas existenciais para o músico. É o meu caso. Deixei de ter problemas existenciais, comecei a ter problemas profissionais. Mas quando uma pessoa está de bem com a música, deixa de ter medo de ser pobre.
Eu sei que tem alguma amargura por a crítica não falar dos seus discos.
Não tenho amargura. Isso causa-me um problema prático. Esta espécie de ostracismo é como ter colaboradores profissionais, pois é assim que vejo a crítica, como colaboradores profissionais que estão num lugar importante, que se pode comparar a uma comporta ou torneira, nos meios de canalização. Estão entre o artista e o seu possível auditor. Por isso, quando os críticos se calam é como se eu tivesse na minha empresa, colaboradores incompetentes, que não estão a cumprir o seu papel. Longe de mim querer que a crítica diga bem de mim...
Porém, a sua música não é jazz, nem é clássica. É uma terceira via...
O que não quer dizer que não tenha relações amorosas com uma e outra.
Tem obviamente. Por isso mesmo: nem os críticos de jazz, nem os da clássica se sentem no seu terreno. Não é ostracismo é, talvez, incapacidade de se reconhecerem na música que faz.
É verdade. É lamentável, mas é assim: há pessoas que se fecham e se espartilham. Felizmente ainda há pessoas que gostam de música e de músicos que vagueiam. Aqui e ali tenho tido ecos do meu trabalho. Por isso sei que há pessoas aptas a falar do meu trabalho. Curiosamente é verdade que não costumam ser especialistas, talvez porque a minha música é um manifesto anti-especialistas.
Como é que surge a gravar para uma editora estrangeira?
A editora é meia-japonesa, meia-americana. Conheci os seus discos numa feira de alta fidelidade, em 1995. Achei-os muito bonitos em termos gráficos, pois eram em «digipack» numa altura em que quase ninguém os fazia. E gostei muito do som, do modo como os discos são gravados digitalmente. Não sou grande fã do disco compacto, mas dentro do disco compacto é das melhores coisas que tem aparecido o som desta editora. Considerando que havia alguma afinidade entre aquilo que eu estava a fazer e aquilo que eles estavam a gravar, mandei-lhes o Serra Sem Fim, que tinha acabado de publicar. Assim que ouviram o disco, mostraram-se interessados em trabalhar comigo.
Como é o circuito de distribuição deles?
Eles têm um circuito que lhes permite a sobrevivência, mas no que respeita ao apoio à carreira dos músicos ainda é muito incipiente. É uma das minhas lutas, tentar melhorar a distribuição. O ano passado melhorou muito com uma nova distribuidora nos Estados Unidos, mas há coisas que eu ainda acho trágicas em relação à minha carreira. Por exemplo: o ano passado fiz uma digressão em duo com Peter Epstein, em França, que me deixou com água na boca para mais. Sei que um jornalista da Jazz Man escreveu um artigo sobre o meu disco Exílio, mas acabou por não o publicar porque não há lá discos à venda.
Mesmo assim, quiseram lançar um segundo disco!
O problema com eles não é não quererem editar mais discos, mas sim colocá-los à venda nos sítios que me interessariam. Basta-lhes vender uma determinada quantidade de discos a uma série de japoneses ricos para não perderem dinheiro.
Este é o seu segundo disco em trio com o Carlos Bica e o Peter Epstein. Parece ter encontrado neles os parceiros ideais.
Sim, sim. O Bica eu já o conhecia, o Peter foi uma surpresa. O Peter é o prazer de dialogar com alguém que tem ideias muito diferentes e que, ao mesmo tempo, consegue comunicar com a minha música. Há, algures, um ponto de unidade.
O seu disco chama-se «Almas». Mas nas notas da capa, sugere um anagrama da palavra com Salam...
... que quer dizer paz em árabe. Digamos que «alma», como todas as outras palavras, é multifacetada de sentidos. É uma semente semântica, a partir da qual, nós, regando-a, podemos fazer crescer inúmeras plantas, com inúmeros ramos e inúmeros frutos. Podia ter escolhido outra palavra, mas esta aparece-me hoje como tendo dado já alguns frutos interessantes. De qualquer modo, devo dizer que não há grande premeditação na escolha dos meus títulos, que são tão improvisados como a aparição de um tema musical. Depois pode haver um trabalho sobre ele, mas à partida é um surgimento espontâneo.
A palavra «salam», ou «paz», faz todo o sentido para este disco que, na minha opinião, respira todo ele uma grande paz. Está tão em paz com o mundo como a sua música sugere? Ou, pelo contrário, procura na música a paz que não sente na vida?
Tem alguma razão ao observar isso, na medida em que para mim a música pode ser uma pré-visão da paz. Estou perfeitamente consciente de que, na vida, a paz não está instituída. O conflito é permanente e as rivalidades aquecem minuto a minuto. Mas uma das missões da música, que eu sinto como minha tarefa musical, é afirmar que a paz é possível. É possível a harmonia.
Está em paz consigo próprio?
Procuro estar bem com a vida. Estar em paz. Não quer dizer que o consiga a todos os momentos. Mas é esse o meu objectivo. A inspiração musical surge quando o músico está bem com a vida.
Há quem defenda o contrário. Há quem afirme que só consegue criar quando está mal com a vida.
Há músicos para quem a inspiração musical e a paz implicam um ruptura com a vida não musical, digamos assim. Por mim, procuro criar, entre a música e a vida, a relação pacífica que as notas na música, com todos os conflitos que há entre elas, conseguem estabelecer em termos de paz. Por outro lado, a música do disco Almas foi feita num dia e num local onde havia essa paz. Depende do local, da hora, das pessoas que lá estão, das relações que se estabelecem. Depende de muita coisa.
Portanto, estas mesmas composições, num outro dia, num outro local, podiam ter dado origem a um disco muito diferente?
Em termos do espírito, sim, sem dúvida.