
Foi o primeiro guitarrista de fado de Lisboa a encetar uma carreira a solo, porque queria divulgar no mundo inteiro o instrumento a que decidiu dedicar a vida. Um convite para gravar com k.d. lang um tema no disco Onda Sonora: Red Hot + Lisbon (1999) deu um novo rumo à sua carreira. Em 1998, tinha lançado A Guitarra e Outras Mulheres, um álbum inovador em que se fazia acompanhar por músicos nova-iorquinos e diferentes vozes femininas não necessariamente oriundas da tradição fadista (Teresa Salgueiro, Filipa Pais, Marta Dias e Elba Ramalho, nomeadamente). A arriscada aposta revelou-se um sucesso, quer junto da crítica (que o elegeu como um dos melhores discos do ano), quer junto do público (que fez dele disco de ouro, para grande surpresa do próprio músico). No ano 2000, mestre António Chainho publicou uma obra ainda mais arrojada, Lisboa-Rio, gravada no Brasil com músicos brasileiros, entre os quais Ney Matogrosso, Paulinho Moska e Virgínia Rodrigues. Convidado a acompanhar o músico ao Rio de Janeiro, onde ele foi tocar, juntamente com Filipa Pais, num concerto de Maria Bethânia, trouxe de lá esta conversa. Mas antes de a transcrever não resisto a contar uma história deliciosa.
Quando regressávamos ao hotel, depois do concerto, António Chainho propôs-me fazermos a entrevista ali mesmo, na praia. Já passava da meia-noite mas estava uma noite fabulosa e sentámo-nos num parapeito junto ao passeio, para conversar. De súbito, aproximaram-se de nós três homens que nos abordaram para pedir lume. Quando lhes dissemos que não fumávamos, um deles perguntou-nos à queima-roupa: «E se tivessemos aqui uma pistola?». Confesso que fiquei assustado, mas mestre Chainho com uma grande calma respondeu: «E quem vos diz a vocês que nós não temos aqui uma também?». Remédio santo: o homem soltou uma gargalhada e o grupinho foi-se embora tão sorrateiramente como tinha surgido. Como se nada se tivesse passado, António Chainho virou-se para mim e indagou: «Onde é que nós íamos?».
Confesso que não estava à espera que um paladino da guitarra portuguesa gravasse um disco de música brasileira. Como surgiu esse amor pela música do Brasil?
Vim ao Brasil pela primeira vez há 33 anos. Nessa altura, nós fizemos aqui uma digressão de dois meses...
Nós, quem?
Onde é hoje a Cervejaria Trindade, funcionava naquele tempo um restaurante de folclore, onde havia o melhor espectáculo do país. Tinha o campeão do mundo de acordeão, o Fernando Ribeiro, havia um grupo de dança, com mais de 20 bailarinos e excelentes ensaiadores, que dançava todas as danças folclóricas do país, do Minho ao Algarve, passando pela Madeira... e havia fado, naturalmente, com a Ada de Castro e a Lídia Ribeiro, que é a mãe da Teresa Guilherme. O restaurante pertencia à Sociedade Central de Cervejas, mas tinha a ajuda do Turismo. Como não havia turismo no Inverno, o grupo ia em digressão a outros países. Fui à Suécia, à Dinamarca e, no último ano, viemos ao Brasil. Actuámos em Manaus, Brasília, Belém, São Salvador, São Paulo, Recife... enfim, fizemos muitos espectáculos durante dois meses. Foi aí que eu comecei a conhecer melhor a realidade deste país e a apaixonar-me por esta música contagiante. Depois disso, voltei muitas vezes ao Brasil, nomeadamente com o Carlos do Carmo. Uma vez trouxe cá o António Mourão e, mais recentemente, vim aqui fazer uns espectáculos com a Fafá de Belém...
Com quem gravou um disco de fados.
Sim, há mais ou menos dez anos. Era um disco de fado-canção, com músicos brasileiros que eu ensaiei.
Quando é que sentiu, pela primeira vez, que a guitarra portuguesa podia expressar-se num contexto diferente, como é o da música brasileira?
Eu tive a sorte de poder viajar por todo o mundo, de ouvir muita música, e acabo por sentir influências musicais de todo o tipo. Quando gravei com a orquestra Sinfónica de Londres, o maestro José Calvário ficou admirado com a variedade das minhas influências musicais. Se ouvir o disco, vai reconhecer que um dos temas tem a ver com a Índia, outro com a Espanha, outro ainda revela influência árabe. Ora, quando fui gravar Guitarra e Outras Mulheres, ouvi as minhas cassetes e cheguei à conclusão que muitos dos meus apontamentos musicais tinham a ver com o Brasil, que é o país que conheço melhor, por ter visitado tantas vezes. Entretanto, como sabe, trabalhei no Red Hot + Lisboa com dois produtores, o Beco Dranoff e o André Levin, sendo que um é venezuelano e o outro brasileiro (embora viva nos Estados Unidos da América). O Guitarra e Outras Mulheres foi produzido pelo Béco Dranoff. Era natural que eu voltasse a recorrer a ele para gravar um disco brasileiro. Foi ele quem me apresentou o Celso Fonseca, que co-produziu Lisboa-Rio.
Esperava o sucesso de «Guitarra e Outras Mulheres», que chegou a disco de platina?
Não, nunca esperei. Esperava sim que, através desse trabalho, o meu nome se tornasse mais conhecido. Como sabe, é difícil um instrumentista vender muito. Veja o caso do Rão Kyao, ou do Júlio Pereira, por exemplo. Com este disco, senti outra resposta. Várias pessoas dirigiram-se a mim e disseram-me: «Nós, deste fado, gostamos.»
Porque é que acha que isso acontece?
As pessoas, se calhar, habituaram-se a ouvir um fado que não é bem genuíno. Mas, voltando a este trabalho: quando começo a ouvir cassetes e percebo que tenho lá muitos temas de influência brasileira, voltei a lembrar-me do Béco Dranoff e decidi mostrar-lhe as novas composições que daí resultaram. Ele gostou imenso e pediu-me autorização para mostrá-las ao Celso Fonseca.
Já conhecia o Celso?
Com certeza, ele é o guitarrista do Gilberto Gil e produziu vários discos, entre os quais o da Virgínia Rodrigues. O Celso gostou, aceitou trabalhar comigo e propus então o trabalho à editora.
Nessa altura, já tinham pensado em cantores?
Não. Mas o Béco sabe da minha preocupação em divulgar no estrangeiro a guitarra portuguesa. Por isso, disse-me: «O Guitarra e Outras Mulheres abriu-lhe, em relação aos portugueses, outros mercados. Porque é que não vamos tentar fazer aqui no Brasil, uma coisa do mesmo género, mas agora com cantores brasileiros e algumas músicas muito conhecidas aqui?» Achei que eles tinham razão e concordei. Mandaram-me muitas cassetes e eu escolhi os temas que mais gostava e também os que melhor se adaptam, na minha opinião, à guitarra portuguesa.
E os cantores, como foram escolhidos?
Quando a ideia surgiu, falaram-me logo em alguns nomes. No Ney Matogrosso, na Virgínia Rodrigues...
Conhecia a Virgínia Rodrigues?
Sim. Nas minhas viagens ando sempre a bisbilhotar pelas discotecas, e percebi que aqui na Europa, em Londres, por exemplo, ela estava a ter um grande sucesso. Falaram-me também na Maria Bethânia e noutros nomes conhecidos, que acabaram por não se concretizar, ora por problemas de editoras ou por incompatibilidades de calendários, não sei bem.
Como foram as gravações?
Gravei tudo em 20 dias, porque tinha um compromisso em Itália e o disco tinha que ficar pronto naquela altura. Gravei, portanto, a base com guitarra e percussão, contrabaixo e violão. E fiz também, logo directo, «A Conversa das Comadres» com esse músico extraordinário que é o Armandinho, que toca bandolim de uma maneira extraordinária. O mesmo se passou com o acordeonista Dominguinhos no «Asa Branca», um tema muito bonito do Luís Gonzaga. Em relação a vozes, só mais tarde tive conhecimento da participação do Paulinho Moska, que eu já conhecia, e da Jussara Silveira, que foi uma grande surpresa para mim, sobretudo no tema «Flor Lunar». O Celso canta a «Valsinha» de Vinicius e Chico Buarque, porque eu lhe pedi, porque acho que ele canta muito bem.
Devo dizer-lhe que gostei mais dos temas instrumentais, do que dos cantados. Até porque quando há cantores, a guitarra aparece um pouco apagada.
Quase toda a gente me diz isso. Penso que houve uma preocupação em tornar os temas mais comerciais, aqui no Brasil.
Um dos temas de que mais gosto no disco é uma composição sua que se chama «Ronque». O que é que quer dizer?
Eu mal começo a compor um tema, para saber o que é, dou-lhe um nome provisório. À «Conversa das Comadres» dei-lhe o nome Paco de Lúcia, por exemplo. «Ronque» é um diminutivo para Rão Kyao, um músico com quem trabalhei e que admiro muito. A minha ideia era mudar o título mais tarde, mas o João Serafim, o meu editor gostou e ficou assim. Já agora, deixe-me contar-lhe que os títulos «A Conversa das Comadres» e «A Zanga das Comadres» têm origem no facto de o Robertinho, o percussionista do disco, ter dito a certa altura que aqueles temas lhe lembravam duas vizinhas que passavam a vida a discutir.
E os outros títulos, o «Rio 6h30» e «Lisboa 23h»?
O «Rio 6h30» tinha, originalmente, muito a ver com a minha cadência de fado. O Celso, porém, pediu-ma para o tocar noutro ritmo. Ao princípio não foi fácil para mim, mas a certa altura senti-me tão bem que pensei: «Esta música foi feita para este ritmo calmo, dolente do Rio.» Encontrado o título para este tema de abertura, pensei que o último tema, que tem muito a ver com os meus inícios, com as guitarradas, se deveria chamar «Lisboa 23h30», porque é o tipo de coisas que nós improvisamos para os amigos à noite, nas casas de fado.
Tem já alguma ideia para o próximo disco?
Normalmente, eu ouço os meus discos durante um mês. Para os fixar, para os espectáculos. Depois esqueço-os, nunca mais os oiço, para não me viciar naquilo que fiz. Liberto-me deles para compor novas coisas. Daqui a dois, três, quatro meses, vou voltar a ouvir o que tenho nas cassetes e isso vai-me abrir horizontes para novos voos musicais. Uma coisa é certa: não quero repetir nem Guitarra e Outras Mulheres, nem este trabalho. Mas não sei. Tudo o que sei é que a minha meta é divulgar a guitarra portuguesa e conquistar o mercado português, assim como outros países.
Tem muitas cassetes de apontamentos musicais?
Várias dezenas. Sempre que tenho uma inspiração, gravo, por muito pouco que seja, porque mais tarde pode resultar dali qualquer coisa. É preciso muito trabalho para juntar vários excertos, desenvolvê-los. Às vezes acontece, como aconteceu agora.
Deixou temas de fora?
Sim, dois, pelo menos que não tiveram aqui lugar. Um deles tem muita influência Brasil-África.
Aqui há uns anos, li uma entrevista sua para um jornal em que afirmava que a guitarra portuguesa tinha os dias contados.
Eu disse isso, nessa altura, porque tinham falecido uma série de guitarristas e não apareciam jovens para substituí-los. Apareceram dois ou três com um pouco mais de talento, mas o resto... Quem quisesse aprender a tocar guitarra, não tinha onde. Os guitarristas profissionais têm medo que lhes roubem o lugar e não querem ensinar. Eu sei os problemas que tive, quando vim viver para Lisboa. Eu sou um autodidacta, tudo o que aprendi foi à minha custa. Quando cheguei a Lisboa, fui insultado nas casas de fado. Uma vez fui a uma de casa de fado e o guitarrista que lá estava voltou-me as costas porque dizia que eu ia ali para aprender, e que aquilo não era uma escola. Fiquei muito ferido, até porque quem me disse isso era um músico que eu admirava. Eu não falo em nomes, por respeito para com os filhos e a família. Não foi o único a ser desagradável comigo. Nessa altura, os guitarristas eram muito vaidosos. Como havia muito poucos bons guitarristas, eles tratavam os principiantes e os guitarristas menos talentosos como escumalha. Fiquei muito traumatizado com essa e outras histórias, por isso é que gostaria de ensinar a guitarra portuguesa. Na altura dessa entrevista, eu estava muito preocupado com o futuro da guitarra portuguesa e desabafei. O Nuno Abecassis, que era o presidente da Câmara de Lisboa, leu esse jornal e convidou-me para almoçar. Mostrou-se bastante preocupado com a situação e afirmou-me que estava muito sensibilizado para a preservação do fado e da guitarra, mas que não sabia o que fazer, nem como. Pediu-me ajuda e eu concordei em ajudar na medida do possível.
Essa é a génese da Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa que existe em Alfama?
Já aí vamos. Depois de falar com o Abecassis, veio falar comigo o responsável pelo Pelouro da Cultura e comecei a tratar com ele. A Câmara tinha comprado uma casa na Mouraria, onde consta que viveu a Severa, e decidiu-se fazer ali a Escola de Guitarra. Uma arquitecta da Câmara começou mesmo a trabalhar nisso. Entretanto, eu disse-lhes que outra das minhas grandes preocupações era a construção da guitarra portuguesa. O melhor construtor de guitarras é a família Grácio. A arte tem passado de pai para filho, mas actualmente só existe um Grácio a trabalhar. O filho não quis aprender a arte. Por isso, se não se fizer nada, vai morrer aqui todo o segredo da construção da guitarra portuguesa. Contactado o Gilberto Grácio, ele prontificou-se a ensinar tudo o que sabe. Infelizmente, a tal casa da Severa não tinha condições para abrigar aulas de guitarra e aulas para os construtores. Eles tinham outras soluções para isso, mas vieram as eleições e ficou tudo em águas de bacalhau. Uns anos mais tarde, fui contactado pela nova Câmara e voltei a prontificar-me a colaborar com o que fosse preciso, para levar a cabo o projecto. Uma vez que a ideia deles não era já só o ensino, mas fazer uma coisa mais ampla, tipo Museu do Fado, propus como consultores a Academia do Fado, da qual faço parte, com o Carlos do Carmo, o Vicente da Câmara, o próprio Gilberto Grácio e o engenheiro Luís Penedo, presidente da Academia. O local escolhido foi, entretanto o antigo Elevador das Águas de Lisboa. Em resumo, a inauguração ocorreu na altura da Expo. Era suposto, um ano depois já estar a funcionar a Escola de Guitarra Portuguesa, mas nunca mais ninguém falou no assunto. Quando fiz a promoção do disco Guitarra e Outras Mulheres, aproveitei para divulgar o projecto da Escola de Guitarra e inscreveram-se trinta e tal alunos. Mas até agora nada. É uma pena, porque já vamos em 13 anos de atraso e cada dia que passa estamos a perder, se calhar, bons guitarristas. A grande evolução da guitarra, só se vai dar quando houver escolas e gente nova a aprender, como aconteceu com a guitarra espanhola.