quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Teresa Salgueiro



2007. Não há memória de um ano sabático tão produtivo. Mal os Madredeus pararam para descansar e reflectir, a sua vocalista desdobrou-se em projectos. Primeiro foi Você e Eu, um disco de música brasileira gravado em São Paulo com o Septeto de João Cristal; depois La Serena, uma colecção de músicas do mundo, de várias épocas, cantadas em várias línguas com acompanhamento musical do Lusitânia Ensemble. Quando já não se esperavamais nadade TeresaSalgueiro, surgiu Silence, Night & Dreams, uma obra ambiciosa escrita para a sua voz por Zbigniew Preisner, o compositor polaco que se tornou famoso através das bandas sonoras que escreveu para o cineasta Krzysztof Kieslowski.

Como surgiu esta colaboração com Zbigniew Preisner?
O Preisner tinha um projecto e andava à procura de uma voz feminina. Na EMI Classics, em Londres, alguém lhe sugeriu falar comigo.

Já conhecia o trabalho dele?
Não, não conhecia.

Nem através dos filmes do Kieslowski?
Não vi os filmes.

E hoje o que pensa do trabalho dele?
Continuo sem conhecer todo o trabalho dele. Ouvi o disco do David Gilmour, para o qual fez os arranjos, e é extraordinário. O Preisner trabalha muitas bandas sonoras e produz um trabalho muito variado. Acho uma música muito inspirada e é interessante a maneira como recorre a uma linguagem mais clássica mas socorrendo-se de elementos actuais em termos sonoros. Neste disco há o recurso à orquestra e a instrumentos tradicionais, mas há também um violoncelo com efeitos electrónicos, sintetizadores e um instrumento que eu nunca tinha visto, uma harmónica de vidro que tem um som maravilhoso. Parece um instrumento mágico, vindo de outro mundo, constituído por uma série de campânulas de vidro e tocado com água, accionada por um sistema de pedais.

Qual é a sensação de ser solista com uma grande orquestra atrás?
É maravilhosa. É uma sensação de grande responsabilidade, de grande concentração. Uma entrega absoluta ao momento, pois é uma música escrita e a voz está muito exposta.

Ainda tem aulas de canto?
Comecei a ter aulas particulares em 1989. Ainda fiz o primeiro ano do Conservatório, mas coincidiu com o início da digressão do Espírito da Paz. Tive aulas com o Cortês Medina, que ensaiava o Coro do São Carlos. Depois com a professora Cristina de Castro. Em 2000 ainda tive com uma professora que infelizmente faleceu, Natália Viana. Neste momento estou sem aulas de canto. Para este processo do Preisner, porque tive que aprender a música pela partitura, tenho estado a ser acompanhada pelo Francisco Ribeiro, que era violoncelista dos Madredeus e é meu amigo. Ele esteve uns anos a formar-se em música numa universidade em Inglaterra e agora é meu professor. Ele foi muito importante na minha formação de cantora no início do grupo. Apresentou-me aos autores clássicos, às óperas, à música antiga. Foi sempre um professor para mim. A presença crítica que ele tem, no Madredeus, era muito importante. Quando saiu, senti essa diferença.

Como viveu essa ruptura do Madredeus?
Não foi fácil, porque as pessoas que saíram eram precisamente aquelas de quem eu estava mais próxima. Sobretudo o Francisco, porque é uma pessoa com quem eu tenho muita empatia. Passou a ser vivência muito diferente. Mas aconteceram muitas outras coisas muito positivas com o grupo. O lançamento do Paraíso, a entrada do Fernando e essa vontade de continuar uma ideia que já tinha andado bastante e que teria que tomar outro rumo porque os músicos não tinham todos a mesma visão, quer do projecto quer do que deviam ser as suas vidas. Eu continuei a achar que podia estar ali e que juntos tínhamos capacidade para continuar no mesmo sentido mas com outra sonoridade. Todo o processo dos Madredeus até hoje foi um processo de aprendizagem muito grande, a todos os níveis.

Acredita neste momento que a banda vai continuar?
Não vejo por que não. A pessoa ideal para falar disso não sou eu, naturalmente, mas prontifiquei-me a continuar a colaborar. Eu hei-de entusiasmar-me com o novo caminho que o grupo tomar. Depende do que o Pedro e o Maria vão querer fazer. Por mim, acho possível. Os Madredeus também são repertório, muitas canções com muitos estilos diferentes...

Porque saiu então?
Sempre me entusiasmei com a ideia da viagem e da aventura, com o facto extraordinário de nós conseguirmos durante tantos anos criar repertório e nunca apresentar o mesmo concerto. E também com o próprio entusiasmo do público por nós. Mas agora, senti a necessidade de poder... aprender... comunicar com outras linguagens enquanto intérprete. Mais do que isso senti a necessidade de poder dispor do meu tempo. Claro que é relativo, porque há sempre compromissos, mas neste momento aquilo que eu não podia era continuar a encarar como prioritária a actividade com o grupo, coisa que fiz durante 21 anos. Se continuasse, com o sucesso que o grupo tem, ia ocupar-me o tempo todo e eu não queria isso. Ao fim ao cabo foram perto de mil concertos.

Foi sua a ideia do ano sabático?
A ideia já tinha surgido por diversas vezes anteriormente. Não foi a primeira vez que fizemos uma paragem. Mas havia a necessidade de repensar como iríamos continuar, porque houve uma grande mudança na actividade. Por exemplo, nas receitas que tínhamos com os discos. O grupo era independente, não tinha apoios de espécie nenhuma, só dependia da sua iniciativa. Uma parte considerável das receitas, que era a venda de discos, desapareceu. Ou diminuiu consideravelmente. Entretanto, era também preciso produzir uma nova obra e a disponibilidade não era igual por parte de todos. Entretanto, o Pedro ajudou-me a montar estes projectos, tanto o La Serena como o Você e Eu. Tive muita sorte com os dois grupos com quem estou a trabalhar. São pessoas muito dedicadas que vivem os concertos com todo o entusiasmo. Preciso de dar uma oportunidade ao próprio tempo, para não ir sempre naquela voracidade que foi extraordinária, mas que no fundo não me iria permitir, se calhar, encontrar-me mais comigo mesma.

A Teresa publicou três discos num ano...
Pois é, é uma alegria.

Três discos que vão em direcções diferentes. Não está a correr o risco de se dispersar?
Nada disso. Tanto o La Serena como o Você e Eu faziam todo o sentido na continuação da viagem do Madredeus. Pela grande proximidade que eu tive à cultura brasileira e a uma música e autores que eu sempre admirei muito. Por outro lado, há esta aproximação à realidade da viagem, de cantar noutras línguas. O Preisner é um convite que surgiu inesperadamente. Eu sou uma intérprete. Nesse sentido, penso que posso fazer imensas coisas diferentes sem me dispersar. Pelo contrário, o que eu gosto mesmo é de cantar e de cantar coisas diferentes. Quanto mais diversificada for a minha actividade musical, mais eu vou encontrar-me a mim mesma, porque é na diversidade que me encontro também. Fiz uma «tournée» ainda agora. Tive três concertos do La Serena, dois em Espanha e um em França, depois fui para o México fazer dois concertos do Você e Eu, e quando cheguei tive uma semana de ensaios para ir para Londres fazer o Preisner. É muito refrescante esta diversidade.

Tem passado a vida a viajar pelo mundo. Como vê Portugal hoje?
Portugal fica longe... e acho que há um grande isolamento, que as pessoas convivem muito pouco. E quando convivem não é num sentido muito construtivo. Aqui é sempre difícil fazer as coisas. O Brasil, que é um país imenso e com graves problemas sociais, tem outra força e capacidade de criação, mesmo no meio da adversidade. Tive esse exemplo com o meu disco, que numa semana ficou feito. Em Portugal, para fazer alguma coisa, é preciso lutar muito. Passamos a vida a esbarrar em obstáculos. Continua a haver a visão do que aquilo que vem de fora é que é bom. E vai-se perdendo a diversidade das várias especificidades portuguesas, pois sendo um país pequeno, temos muitas culturas. Há muito a necessidade estereotipada de que as pessoas tenham cursos superiores e acaba por se perder muito o contacto com a felicidade. De qualquer modo, somos um país pobre...

E musicalmente?
O pais progrediu imenso nos últimos 20 anos, mas basta ver que a nossa tradição mais conhecida e importante é o fado, que não é uma música de escola. A música não tem entre nós, ao nível da formação, o papel que tem noutros países. Nunca teve, portanto a «décalage» é enorme. Lisboa, como é uma cidade muito cosmopolita, dá origem a uma série de cruzamentos e influências muito interessantes. Sei que há muitas bandas novas, muitos projectos, mas confesso que não estou a par de tudo o que existe. Acho óptimo a actual revitalização do fado, sobretudo num país onde a música não é apoiada, pois exalta o amor pela cultura portuguesa. Acho que isto coincidiu com a morte da Amália, com a falta que se sentiu.

O «La Serena» não foi muito bem aceite pela crítica portuguesa e este projecto do Preisner também só valeu uma estrelinha no jornal «Público». Como é que reage às críticas menos positivas?
Não devia dizê-lo, mas há críticas que nem leio. Claro que sabe muito melhor quando as pessoas gostam do que fazemos. Aquilo que me importa é o público, a reacção das pessoas que vão ouvir os meus concertos. Por outro lado, não considero que haja crítica especializada em Portugal. Em Inglaterra, um crítico tem que ter um curso superior de músico e isso não se passa no nosso panorama. De qualquer modo, este é um momento de grande felicidade para mim, porque é um ano em que eu entro em contacto com três realidades musicais distintas, com músicos muito diferentes, todos eles muito entusiasmados. Um ano em que consegui levantar dois projectos e corresponder a um convite com sucesso. Se houver quem não goste, paciência. Acho que aquilo que estou a fazer tem muita qualidade, ao nível da entrega com que o faço e ao nível das pessoas com quem estou a trabalhar.

Esses dois projectos são para continuar?
Ainda não tenho a certeza. Eu gostaria e sei que há entusiasmo de ambos os grupos. Ainda não sei como, nem quando, mas faria todo o sentido continuar. Nos próximos tempos, estou com o tempo muito preenchido com as «tournées» dos vários projectos. Depois vou pensar, com muita calma.