quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Nick Gold



Nick Gold não é músico, mas editor. Na verdade, é o mais bem sucedido editor do mundo na área da chamada «world music». É ele quem está por trás do sucesso do Buena Vista Social Club, de Ali Farka Touré (na foto, com Nick Gold), da Orchestra Baobab e de Toumani Diabaté, entre muitos outros. No entanto, o grande público nem o conhece, pois o «homem de ouro» sempre preferiu ficar na sombra para deixar os seus artistas brilhar. Porém, quando a sua editora, a World Circuit, festejou, em 2007, 20 anos de existência, ele achou que era chegada a altura de dar a conhecer o seu trabalho. E aceitou ter uma longa conversa comigo num hotel lisboeta.

Fale-me um pouco de si.
Sou de uma família pequeno-burguesa do Norte de Londres. Tenho um irmão e uma irmã. O meu pai, Jack Gold, é um realizador que trabalha principalmente para a televisão, mas também já fez algumas longas-metragens. Desde muito novo comecei a coleccionar coisas: bandas desenhadas norte-americanas e, mais tarde, discos.

Lembra-se do primeiro disco que comprou com o seu dinheiro?
Foi um «single» de Barry Blue, não muito bom, chamado «Dancin' (on a Saturday Night)».

Que idade tinha?
12 anos. O meu pai costumava cantar ao piano nas manhãs de domingo. Possuía vários discos de Louis Armstrong, dos Hot Five e Hot Seven e, apesar de ser uma pessoa calma, punha esses discos a tocar muito alto. Assim começou o meu interesse pela música, sobretudo pelo jazz mais antigo, de Nova Orleães. Jelly Roll Morton, Louis Armstrong, King Oliver... Comecei, então, a coleccionar esse tipo de discos e também bebop, passando pelo Duke Ellington, Lester Young, Count Basie, Charlie Parker. Quando chegou a altura de ir para a Universidade, pensei em estudar Literatura Inglesa, mas as minhas notas em inglês não eram muito boas, por isso acabei por ir para História. Comecei por História inglesa mas, como achei muito chato, mudei para História de África. Estudei na Universidade de Sussex, mas apenas durante um ano, pois queria viajar. Fui até Israel, Egipto e Sudão. Quando regressei dessa viagem, comecei a ouvir reggae, música cubana, soul e muito blues, que coleccionava furiosamente. Até que comecei a trabalhar numa loja de discos de jazz. Paralelamente, participava como voluntário numa organização chamada Community Music, onde ajudava a trazer música para as escolas. Aí ouvi falar de uma empresa que trazia músicos do mundo inteiro para concertos em Inglaterra e que queria lançar uma editora de discos. Procuravam alguém para os ajudar. A única experiência que eu tinha era a de trabalhar numa loja de discos, mas para Ann Hunt e Mary Ferguson, as duas senhoras que estavam à frente da empresa, isso foi bastante.

Em que ano se passou isso?
Em 1984 ou 1985... Eu conheci-as em 1986. Elas traziam para Inglaterra música popular noutras paragens. Artistas da Grécia, Sudão, Índia, Venezuela... Quando acabavam os concertos, as pessoas vinham perguntar pelos discos e não os havia. Por isso, elas pensaram começar a gravar os artistas, tanto mais que as autoridades londrinas estavam a dar dinheiro para subsidiar concertos de Youssou N'Dour, Franco, Sunny Adé... O interesse pela música africana estava a crescer em Inglaterra e começaram a aparecer editoras nessa área. A própria Real World de Peter Gabriel nasceu mais ou menos nessa época. Quando cheguei para trabalhar com as duas senhoras na World Circuit, elas ainda só tinham gravado um disco, mas eram muito ambiciosas, como o comprova o nome da etiqueta, que indica claramente a sua vontade de dar audiência mundial a músicas de expressão local. Logo no início, tive de fazer tudo: tratar da distribuição, da escolha das capas, da produção e também da promoção. Nesse aspecto, fizemos toda a diferença, pois enquanto as outras editoras enviavam 20 ou 30 exemplares de promoção para críticos especializados, nós enviávamos 10 ou 20 vezes mais, porque quando eu trabalhava na loja as pessoas vinham à procura de discos que tinham ouvido numa obscura rádio local ou mesmo no boletim da paróquia.

Qual foi o primeiro grupo que gravou?
Foi uma banda chamada Shirati Jazz, do Quénia. Em Inglaterra nunca ninguém ouvira falar deles, mas apareceram duas mil pessoas para o concerto. Bastava anunciar «banda africana» para o público acorrer. Depois do concerto, Ann Hunt disse-me: «OK, podes gravá-los.» Fiquei aflito, sem saber o que fazer. Felizmente, tinha um amigo que montara um estúdio de gravação e fui ter com ele. Fechámo-nos no estúdio durante dois dias. Foi a minha primeira experiência e adorei o ambiente. Foi muito excitante e fiquei logo «agarrado», com vontade de repetir a dose. A minha segunda experiência foi com Celina González. Com ela veio Barbarito Torres, o homem do alaúde cubano, que mais tarde participou no Buena Vista Social Club. E, finalmente, veio o Ali Farka Touré, cujo disco Red andava a tocar na rádio. As pessoas estavam fascinadas por aquele som que soava um pouco a blues, mas também a folk inglesa. A sua origem era um enigma. Fui buscá-lo ao aeroporto e...

Ele mudou a sua vida!
É absolutamente verdade. Quando o vi ao vivo, deparei com um homem maior que a vida. Era uma figura carismática, tinha um andar de rei, uma confiança em si mesmo enorme. E tinha um sentido de humor incrível. Mais do que tudo, era lindo vê-lo tocar guitarra. Fazia-o com uma profunda simplicidade e elegância. Afirmava que tinha um dom e que a sua música era de uma importância enorme, não só para ele, mas para o seu país e o seu povo. Ele sentia que tinha uma responsabilidade enorme. Quando o conheci, fiquei imediatamente convencido da sua força e da sua potencialidade para se afirmar como um artista importante na cena mundial. O primeiro disco que gravámos com ele, em Londres, foi feito em três horas. Para mim, não havia dúvida nenhuma que estava na presença de alguém destinado a tornar-se tão mítico como um Lester Young ou um Charlie Parker.

Como é que surgiu a colaboração dele com o Ry Cooder?
O Ry Cooder entrou em contacto connosco. Procurou-me porque queria falar com Ali. Deve ter ouvido um disco dele em Los Angeles e ficou vidrado. Ry estava em Inglaterra, em digressão com uma banda chamada Little Village. Por uma coincidência incrível, Ali estava comigo em Londres nessa altura, vivia no meu apartamento. E Ry veio visitar-nos. Embora Ry não falasse francês e Ali não soubesse uma palavra de inglês, gostaram um do outro e ficou logo ali assente que um dia gravariam juntos. Comecei a gravar os temas que Ali ia compondo e quando tive 10 temas na mão enviei-os a Ry. Mais tarde, quando fui com Ali aos Estados Unidos em digressão, reservei o estúdio de Los Angeles onde Ry Cooder gosta de gravar. Mal chegámos a Los Angeles, fomos a casa de Ry e eles tocaram juntos durante horas. No dia seguinte, enfiaram-se no estúdio, e três dias depois tínhamos o disco. Ali não gostou do estúdio e acho que não ficou muito satisfeito com o resultado. Ali não procurava a perfeição e Ry sim. Ali não gostava de repetir várias vezes a mesma coisa, e naquele estúdio obrigaram-no a fazer isso. Ele não percebia porque tinha de repetir o mesmo tema várias vezes. Para não ver as indicações dos técnicos, Ali fechava os olhos enquanto tocava.

Quem teve a ideia inicial para o «Buena Vista Social Club?»
Eu estava a trabalhar com Marcos Gonzales no disco dos Sierra Maestra e disse-lhe como gostava do Arsénio Rodriguez. Então ele disse-me: «Sabe, muitos desses músicos ainda estão vivos.» Falou-me do Rubén González e de Cachaíto, o neto do Cachao original. E eu falei-lhe de Eliades Ochoa e Barbartito Torres, dois músicos com quem já tinha trabalhado. De repente, ele perguntou-me: «Porque não formamos uma grande orquestra com estes e outros músicos, misturando gerações para fazermos um tributo à música de outros tempos, com novos arranjos?» Quando voltou para Cuba começou a enviar-me as canções, nomes de músicos, e o projecto foi crescendo. Sabendo como a música cubana é popular na África Ocidental, lembrei-me de juntar ao projecto alguns músicos africanos. Como sabe, os músicos africanos não puderam comparecer, devido a problemas com os seus passaportes. Quando disse ao Ry Cooder que estava a pensar neste projecto, ele imediatamente manifestou o desejo de fazer parte dele. Quando cheguei a Havana com o meu engenheiro de som, o Marcos já estava há meses a ensaiar a orquestra. O ambiente no estúdio era fantástico. Alguns dos participantes já não gravavam há anos e estavam entusiasmadíssimos. Os jovens estavam excitados por estar a tocar com verdadeiras lendas vivas. O som era fabuloso.

Como explica o sucesso fenomenal do disco?
Usámos microfones no tecto para captar aquela atmosfera maravilhosa. Misturámos o disco de modo a que o som fosse o mais envolvente possível. Por outro lado, não há percussões ruidosas, como tímbalos, por exemplo. As congas são tocadas suavemente. Só as maracas fazem um pouco mais de barulho. É um som suave. Ry e o filho, Joachim, que é percussionista, tocam o tempo todo, e tenho a certeza que é uma das razões para o disco ser tão popular. Porque a polirritmia assim criada dá-lhe um toque mais ocidental, mais familiar aos ouvidos europeus e norte-americanos. É muito subtil e funciona a um nível quase inconsciente.

Como é que o Wim Wenders surge associado ao projecto?
Surgiu depois de o disco estar concluído. Ry estava a gravar música para um filme dele, não me lembro qual, e, como acabava de chegar de Cuba, deu a música a ouvir a Wim Wenders, que ficou fascinado por ela. E quando Ry lhe disse que ia voltar a Havana para gravar com Ibrahim Ferrer, Wim foi com ele. Num mês, conseguiu pôr de pé uma equipa de filmagem e filmou os concertos que fizemos em Amesterdão e Nova Iorque.

Li algures que não gosta do termo «world music»?
Porque as pessoas o utilizam como se definissem um género musical. Como se a world music fosse comparável ao blues ou ao jazz. Ora aquilo a que chamam world music abarca géneros muito distintos. Por outro lado, reconheço que sem esta «etiqueta» a música não teria chegado às lojas, aos jornais e à rádio. Mas, a prazo, acho que é limitativa e pode causar problemas. Pode funcionar como um gueto ou algo assim.

Que pensa da globalização?
Não gosto da ideia. No que se refere à música, tende-se para um som manufacturado. Muitos discos soam ao mesmo. Mas sem isso seria muito difícil para algumas músicas chegarem a outros ouvidos. Contudo, as pessoas também procuram música diferente da que conhecem. É complicado. As pessoas são mais inteligentes do que se supõe habitualmente, querem que as suas imaginações sejam estimuladas.

Como vê o futuro da World Circuit?
É uma questão à qual é muito difícil responder. Os últimos meses foram muito penalizadores. Ali morreu, Ibrahim morreu, Angá morreu... Custou-me particularmente a morte deste último, porque ainda tinha muito para dar e eu estava com muita curiosidade de ver como iria evoluir. No entanto, estou a preparar quatro novos discos. Um deles com Oumou Sangaré, que está a correr muito bem. É funky, tocado com instrumentos que eu nunca tinha ouvido, como bambara balafon, que tem um som incrível. E tem um novo baixista camaronês muito bom. A Orchestra Baobab acaba de realizar uma demo para o seu próximo álbum. Há muita coisa a correr neste momento.

Como vê o futuro da indústria discográfica, agora que se fala no fim do CD e na desmaterialização da música?
Não faço ideia. Não sei que pensar. Eu gosto de discos, das capas, do objecto em si, e se ele desaparece não sei como vai ser. Não tenho medo, mas preocupo-me. Embora os «downloads» tenham lados bons. Por exemplo, para fazer um disco tenho que ter um determinado número de temas. Por vezes tenho cinco ou seis boas canções de um artista, mas encontrar mais meia dúzia delas pode, em alguns casos, ser complicado. Com os «downloads», podemos acabar uma canção e colocá-la logo à venda. Isso é uma vantagem, até porque 60 minutos de música pode ser demasiado. Preferia os discos que continham 40, 45 minutos de música. Para mim, era a duração ideal. Ainda por cima, hoje em dia, toda a gente se queixa de falta de tempo, pois a nossa atenção é solicitada por demasiadas coisas. Para mim, ainda é muito prematuro estar a falar na extinção do CD.