
Quando saiu Hail to the Thief, em 2003, pude conversar com o baixista dos Radiohead, Colin Greenwood (o primeiro a contar da direita na foto). Foi ele quem me explicou que «Hail to the thief» é uma corruptela de «Hail to the chief» (Salve o Chefe!), grito de saudação usado sobretudo pelos militares. A expressão «Salve o Ladrão!» foi inventada para saudar a «vitória» de George W. Bush nas eleições para Presidente dos Estados Unidos e, mais tarde, quando decidiu «invadir» o Iraque. A banda de Thom Yorke usa-a com um sentido muito mais lato, como se poderá ler nesta entrevista exclusiva.
O título do vosso novo álbum é uma clara alusão a George W. Bush, mas também é mais do que isso...
Sim, é verdade. Também alude ao facto de o nosso disco ter aparecido na Internet, ainda antes de estar pronto, pois foi-nos roubado quando ainda estávamos em estúdio a trabalhar nos temas. Refere-se, por isso, também à facilidade com que hoje se passa por cima dos direitos dos autores e ainda à facilidade com que as editoras desmembram um álbum como Revolver, dos Beatles, disponibilizando na Internet a possibilidade de se comprarem apenas algumas das suas faixas, sem ter em conta que foi concebido como um todo. Refere-se igualmente ao modo como as empresas hoje nos roubam uma parte das nossas vidas, ou da nossa cultura, aniquilando o legado dos nossos pais e avós, substituindo-a por coisas como os MacDonald's e essas porcarias. Para mim, é chocante ver como as multinacionais mais poderosas invadem zonas históricas como a baixa do Porto ou de Dublin, fazendo tábua rasa do comércio tradicional. É também para essa «invasão» que remete a capa do álbum, que nos foi inspirada por uma rua de Hollywood, com os seus sinais e marcas multicoloridos, com palavras por todo o lado que atraem a nossa atenção 24 horas por dia. Numa cidade como Hollywood a nossa atenção visual é solicitada em permanência, de tal modo que não nos deixa tempo para pensar no que vimos, para digerir tanta informação visual.
Se tivesse a oportunidade de falar, cara a cara com Bush ou Tony Blair, que lhes diria?
Provavelmente, ficaria demasiado assustado para dizer o que quer que fosse. (Risos) Nas últimas eleições votei pelos trabalhistas. Quanto ao Bush, embora não se trate do meu país, perguntar-lhe-ia certamente como é que conseguiu tornar-se Presidente dos Estados Unidos. De Tony Blair, gostaria de saber como pode ter ele tanta certeza de que está a agir bem, sendo que do ponto de vista moral toda a sua actuação me merece as maiores reservas. Aliás, nota-se no seu rosto que não está muito à-vontade quando aparece a justificar certas decisões.
Uma das mensagens deste disco parece ser «o poder, todo o poder, corrompe». Mas também parece querer provar que a música tem o poder exactamente contrário.
Bem, acho que há algumas canções bonitas neste disco e que as pessoas sempre gostarão de canções bonitas. Para responder mais concretamente à sua questão, quero dizer que este disco foi concebido como uma gravação ao vivo. Muito do nosso trabalho de preparação foi feito em Portugal e em Espanha, onde tocámos 18 canções de seguida, todas as noites. Para mim, o lado político da música está no facto de três mil e quinhentas pessoas disporem-se a pagar um bilhete para virem ouvir-nos ao Coliseu. Divertindo-se num local que o ditador Salazar tinha fechado, durante 48 horas ou mais, já não me lembro, só para provar aos seus proprietários que podia fazê-lo sempre que quisesse. Uma das canções deste álbum, «Sit Down, Stand Up» reflecte situações destas, quando uma reunião de pessoas, num local público, é visto como um acto político. É assim que eu vejo a combinação entre música e política. Porque já há demasiadas coisas no mundo a separar as pessoas, a isolá-las umas das outras. Talvez devido ao clima, acho que em Portugal e Espanha as pessoas têm mais tendência para se encontrar, para se reunir, em família ou entre amigos. E acho isso maravilhoso.
Este disco já foi descrito como uma síntese entre «Kid A» e «OK Computer». Concorda com esta afirmação?
Hail to the Thief é o nosso sexto álbum de originais e o último trabalho que devemos à EMI. O nosso contrato expira no início de Junho quando o disco for colocado à venda no mercado. Até por causa disso, acho que sim, que, de certo modo, é uma espécie de compilação de todos os estilos de música que temos feito. Há várias canções com guitarras, mas também há computadores pré-programados. É como uma conclusão, ou uma síntese da nossa carreira, se quiser. É também o primeiro disco que gravámos sem aquele receio que nos assalta sempre que temos que entrar em estúdio para gravar um novo álbum. Como tínhamos testado todas as canções ao vivo, nomeadamente em Portugal e Espanha, sabíamos exactamente o que queríamos, o que íamos fazer e estávamos descontraídos. Tínhamos um «mapa» para nos guiar.
Concorda, portanto, que este álbum é menos coeso do que os anteriores?
Quando ouço Kid A ou OK Computer sinto que há ali uma unidade, que fazem sentido como um todo bem estruturado. Este novo disco não o sinto assim, é verdade, vejo-o mais como uma colecção de canções de que gosto muito. Como uma compilação. Mas foi consciente, foi uma decisão nossa.
Sente que são melhores músicos hoje do que quando gravaram «The Bends»?
Não sei se isso é verdade. Não passamos a vida a ensaiar, só trabalhamos a sério quando temos mesmo que o fazer. Somos mais como artistas que têm muito a aprender uns com os outros, do que músicos profissionais.
Então por que é que as boas ideias vos acorrem com mais frequência agora?
Acha isso? Na verdade, quanto melhor nos conhecemos, mais as ideias afluem facilmente. À medida que vamos envelhecendo, vai-se tornando cada vez mais importante termos prazer na companhia uns dos outros e no som que somos capazes de produzir colectivamente. De outro modo, as digressões poderiam tornar-se maçadoras. Para mim, o mais importante neste grupo é a diversidade de sons que cada um de nós pode trazer. Diversidade é uma palavra-chave para nós. Cada canção tem de soar diferente de todas as outras, ter um estilo próprio.
Pode falar-me do papel que cada um de vocês desempenha concretamente na elaboração dos temas?
Este disco começou, como de costume, com alguns esboços de canção que o Tom gravou em CD para nos dar. Sobre esse material em bruto trabalhámos colectivamente em Oxford e durante a digressão fomos burilando os arranjos que, mais tarde, gravámos em Los Angeles. Há uma canção no disco, que se chama «Go to Sleep», que na origem era muito tipo West Coast, género Crosby, Stills and Nash, meio country, mas que nas gravações perdeu esse lado, sobretudo na segunda parte da música, para se tornar mais «pantanosa», mais tipo Stone Roses. E tudo isto aconteceu ao vivo, sem o planearmos. Eu gostava muito da primeira versão, mas também adoro esta segunda. Ora, isto só pôde acontecer porque estávamos todos muito descontraídos, a trabalhar sem pressão de nenhuma ordem.
Gravaram parte do disco em Oxford e a outra em Los Angeles. A mudança de cenário influenciou, de algum modo, o resultado final?
Para o produtor (Nigel Godrich), a mentalidade de «gang» é importante. Quando nos afastamos das nossas rotinas diárias, da nossa família e amigos, e ficamos em comunidade entre nós, concentramo-nos mais no trabalho de equipa. A primeira vez que isso aconteceu foi com OK Computer, em que fomos para o campo trabalhar.
Mas porquê Los Angeles?
Porque há lá um estúdio, chamado Ocean Way, onde o Nat King Cole gravou e também o Lionel Hampton, que morreu o ano passado. É um estúdio lindo, por onde o Frank Sinatra também passou nos anos 70.
Achou o local inspirador?
Não tanto o local em si, mas mais a cabine de controlo, a mesa de mistura e os microfones que o Nigel utilizou. Ele já tinha lá produzido outros álbuns, do Beck e do Travis, e gosta do ambiente e do material. Por isso, pudemos trabalhar muito depressa. Chegámos a pensar alugar uma casa em Lisboa, junto ao mar, para trabalhar e, provavelmente vamos fazê-lo um dia, mas desta vez o Nigel fez questão de trabalhar em Los Angeles.
Pode dizer-se que o Nigel se tornou numa espécie de «sexto membro» da banda?
Não é bem assim. A nossa relação evoluiu com o tempo. Os Radiohead somos nós os cinco, o Nigel trabalha agora com outros artistas e as decisões somos nós que as tomamos, não ele.
De qualquer modo, existe uma cumplicidade muito grande entre vocês.
Ele é de uma generosidade muito grande. E é, muito provavelmente, o produtor mais talentoso da nossa geração. O correspondente de um Phil Spector doutros tempos.
A voz de Thom surge mais uma vez manipulada tecnologicamente, mas ele parece estar a cantar cada vez melhor. Sabe se tem tido treino específico para isso?
Ele teve aulas, em tempos. Mas, em discos anteriores, ele não gostava de ouvir a sua voz, achando-a muito limitada a um único estilo, e foi por isso que começou a trabalhá-la digitalmente. Neste disco, porém, até ele parece gostar de se ouvir. Pessoalmente acho que canta maravilhosamente. Talvez por estar relaxado, em alguns temas o tom da sua voz aproxima-se mais da de um tenor. Talvez também tenha a ver com a idade, com o facto de ter sido pai recentemente, não sei. Sei que está mais solto, mais confiante e que a sua voz soa mais colorida, com novas capacidades. Quase tudo o que gravámos foi à primeira «take» e, pelo facto de se ter deixado ir, de não pensar tanto no que estava a fazer, Thom ganhou elasticidade na expressão da dor, do sarcasmo, da tristeza.
Pensa que podem continuar a crescer musicalmente, para sempre, ou acredita que há um limite para a criatividade?
Não, não existe limite. No outro dia fomos ouvir o Neil Young, aqui em Dublin, tocar em Baker Street para 400 pessoas os temas do seu novo disco, onde se fala de alguém que matou um polícia na Califórnia. É como um musical acerca da família do assassino e da família do polícia e sobre o modo como esse drama afectou toda a comunidade. E é um trabalho magnífico. Ele tem quê - quase 60 anos? - e continua a evoluir musicalmente, como autor e como guitarrista. É um artista fenomenal, um dos melhores. Conheço o seu trabalho desde os 11 anos e continuo a admirá-lo. É o tipo de pessoa que é compulsivamente criativo e que vai sê-lo até morrer.
E das novas gerações, ouviu algo ultimamente que o tenha impressionado realmente?
Boa pergunta. É difícil responder. Gosto dos The Black Keys, uma banda norte-americana, e dos White Stripes, que gravam música nova que soa como se fosse antiga. Surpreende-me o êxito deles porque teria tendência para pensar que só meia dúzia de pessoas gostariam de um tal trabalho.
Consegue imaginar como será a vossa vida daqui a dez anos?
Enquanto grupo? O meu sonho seria sobreviver economicamente por forma a daqui a dez anos podermos regressar a Dublin e a Lisboa todos os Verões para tocar. O ideal seria que os nossos discos vendessem sempre entre um e dois milhões de cópias, para podermos fazer belas digressões por sítios que nos agradam. Para depois voltarmos a casa satisfeitos com o nosso trabalho. Como o Neil Young, no fundo. Gostaria que tivéssemos sucesso suficiente, mas não demasiado, para não termos que tocar em estádios de futebol e lugares semelhantes.