
Um dos temas de Before the Poison, o excelente disco que Marianne Faithfull publicou em 2004 intitula-se «Desperanto». Foi escrita a meias com Nick Cave, conta com a participação de P.J. Harvey, e fala «o esperanto dos desesperados». É, no entanto, um tema atípico neste disco onde a sobrinha-neta do escritor Leopold von Sacher Masoch canta sobretudo o amor e o mistério do amor, ela que, aos 58 anos, está de novo apaixonada. A confissão foi feita ao telefone, em vésperas de vir a Portugal.
Conte-me a história deste «Before the Poison».
Kissin' Time é um belo disco, do qual gosto muito. Porém, foi um álbum bastante experimental porque eu queria experimentar algumas novas tecnologias, nomeadamente no laptop. Correu bem, mas quis agora fazer algo de diferente: regressar ao analógico e aos velhos gravadores de fita. Até porque sabia que Polly e Nick usam esse tipo de equipamento. Por outro lado, queria trabalhar com menos gente. Tenho consciência de que corri um grande risco com Kissin' Time. Podia não ter resultado. Desta vez usei menos gente e acho que foi uma excelente ideia.
Como foi trabalhar com P.J. Harvey e Nick Cave?
Sou grande fã do trabalho da Polly e do Nick. Quanto ao Jon Brion conheci-o quando trabalhei com o Beck, em Kissin' Time. Nessa altura, fiquei com vontade de escrever uma canção com ele e agora pude concretizar esse desejo. Foi complicado, porque Jon não viaja. Não gosta de viajar. Por isso tive que ir até Los Angeles - o que até se revelou divertido - para gravar aquela que é uma das minhas músicas preferidas neste disco, «City of Quartz».
Escolheu o Jon Brion por causa da natureza da canção ou escreveu aquela letra porque achou que tinha a ver com a sua música?
Quando fui para Los Angeles, não sabia que canção iria fazer. Escrevi-a lá, com ele, criámo-la juntos.
Como é que procede para escrever uma letra a meias com alguém?
No caso desta canção, eu escrevi a letra sozinha e Jon escreveu a música. A maior parte das canções foi assim: eu escrevi as letras e Polly ou Nick as músicas. A única pessoa com quem eu tive que escrever letras a meias, foi a Polly.
E Damon Albarn.
Só em parte. Na realidade, Damon escreveu a maior parte da canção, assim como a melodia e eu limitei-me a acrescentar a minha pitada. Com a Polly é que escrevemos realmente a meias. Não foi a primeira vez que escrevi letras com alguém, estou habituada a fazê-lo. Na realidade, é mesmo a maneira clássica de escrever uma canção. Era assim que Paul e John faziam.
Com quem foi mais fácil trabalhar?
Bem, cada um deles é muito diferente dos outros. Não posso dizer que tenha sido mais fácil com este ou aquele. Foi muito gratificante trabalhar com todos eles. Mas o que eu sinto em relação a cada um deles não importa, o que importa é a qualidade do trabalho que realizámos juntos. O que interessa é se cada canção saiu boa ou não.
Já me disse que gostava particularmente da canção co-escrita com Jon. Tem mais alguma preferência?
Bem, já mudei várias vezes de opinião.
Neste momento.
Neste momento, divido-me entre «Crazy Love» e «City of Quartz», que é de «combustão lenta», como eu costumo dizer. Quando a gravei não me apercebi que era tão interessante. É uma canção que tem vindo a crescer dentro de mim.
P.J. Harvey e Nick Cave são, de certo modo, discípulos seus. E a Marianne, de quem é que se considera discípula?
A pessoa que mais influência exerceu sobre mim sempre foi Billie Holiday.
Quem são os músicos e cantores que gosta de ouvir hoje em dia?
Mais ou menos os mesmos que sempre preferi ouvir ao longo da vida. Ouço muito música clássica e muito jazz, John Coltrane sobretudo. Adoro também os blues mais antigos.
Nunca desejou gravar um disco mais jazzy?
Não, só me preocupo em gravar discos de Marianne Faithfull. Não quero gravar discos jazzy, mas discos que se pareçam comigo.
E quanto a Damon Albarn: também é fã da sua música?
De alguma, sim, não de toda.
Já tinha colaborado com ele em «Kissin' Time».
Inicialmente, esta canção também era para figurar nesse disco. Mas não a consegui gravar com os Blur porque eles estavam em digressão na altura. Como gostava da canção, acabei por a gravar sem eles.
O que é que a expressão «before the poison» significa para si?
Na verdade, acho que pode significar o que quisermos. Gosto de lhe dar toda a liberdade de interpretações. Quando a gravei dei-lhe o sentido literal, mas como título do álbum pode querer dizer coisas diferentes para diferentes pessoas. E é isso que eu gosto nela.
Quem é a menina que aparece na capa do disco? Tem algum valor simbólico?
É uma modelo profissional. Aparece ali para dizer que eu não estou só.
Não representa a sua própria infância?
Não, nem sequer é parecida comigo. É uma criança e significa que não estou sozinha. É a primeira fez que se fez uma capa para um disco meu em que aparece a presença de outro ser humano. O sentido é só esse: há outro ser humano na fotografia.
Quem teve a ideia de convidar o escritor Will Self para escrever um texto para o disco?
Fui eu.
Conhece-o pessoalmente?
Sim, somos amigos. Ele veio entrevistar-me um dia, para um jornal ou uma revista, e ficámos amigos.
Como descreveria a obra de Will Self a alguém que nunca o tenha lido?
É material de primeira. Estranho e sublime. Acabo de ler a sua última recolha de contos e ainda estou sob o seu feitiço. Espero ansiosamente pelo seu próximo romance. Eu adoro-o e é assim que me apetece descrevê-lo. O seu é um mundo muito estranho, mas é um mundo que eu compreendo. E estou muito feliz com o texto - muito louco - que escreveu para mim.
Que acha do disco, agora que o pode ouvir com algum distanciamento?
Ainda gosto muito dele. Penso mesmo que é o melhor que já gravei até hoje.
O que espera ainda do futuro?
Primeiro que nada, manter a minha saúde e a minha criatividade. Adorava fazer mais um filme e entrar em mais uma peça de teatro, pois adoro representar e gostava de o fazer mais frequentemente.