
Em Março de 1967 foi editado o primeiro disco dos Doors. Esse foi o pretexto para esta conversa com Ray Manzarek, o «psicadélico» teclista da mítica banda. Antes de entrar para a sala onde o músico está a receber os jornalistas, a promotora da Warner avisa: «Não entre em divagações, lembre-se que está aqui porque se celebram 40 anos sobre o lançamento do primeiro disco dos Doors.» Pede ainda que evite falar do litígio judicial que opõe Ray e Robbie Krieger ao terceiro sobrevivente da banda, John Densmore. «It's a touchy subject», afirma ela.
Quarenta anos, e a música continua tão viva como antes...
É fantástico! Entramos no século XXI a falar da música dos Doors. Na América, temos sido objecto de inúmeras homenagens e tivemos direito a uma estrela no Hollywood Boulevard e a um Grammy de carreira... A festa continua!
Daqui a 40 anos, a música dos Doors ainda será importante?
Não sei, mas seria interessante verificar se o espírito dos anos 60 ainda exercerá alguma influência. «Façam amor, não a guerra», dizíamos nós, e veja o estado do mundo! Essa frase não faz o mínimo sentido hoje, mas penso que poderá voltar a fazer daqui a 40 anos. Quanto à música, talvez seja ouvida como hoje ouvimos música clássica. Ainda no outro dia ouvi na rádio música de dança inglesa com 300 anos. Mais importante do que a música é o legado das ideias. Daqui a 40 anos, deixaremos a Era dos Peixes para entrar na Era do Aquário. Existimos em vários planos vibracionais, e isso é uma das coisas que aprendemos quando tomamos LSD. A música não passa de vibrações que desaparecem no ar mal as notas são tocadas. É a forma artística mais efémera que existe, mas a sua energia pode transportar-nos para um patamar mais alto da existência. Isso aconteceu nos anos 60, quando percebemos que podíamos mudar o mundo. Porém, as forças da cristandade e do islamismo fizeram o mundo regredir, a fim de manterem o controlo que têm exercido desde há séculos. Era disso que falávamos nos anos 60: de liberdade individual e colectiva. Podemos libertar-nos do conhecimento onde nos querem confinar, libertar-nos dos políticos e das suas políticas e também das religiões, mas essa é a parte mais difícil, porque tem a ver com o desejo e a necessidade de imortalidade que existe em cada indivíduo.
Lembrou um dia que existe um lado negro em todo o ser humano que temos de assumir, sob pena de sermos apenas metade de um ser.
É o que somos hoje: meios seres humanos. A América endoideceu, a guerra no Iraque é uma loucura, os radicais islâmicos são loucos. Pessoas razoáveis, que ainda há poucos anos viviam em paz umas com as outras, estão agora a guerrear-se. Quem imaginaria que alguém seria capaz de levar aviões cheios de gente contra arranha-céus? Ou chegar a um mercado apinhado de gente a comprar fruta e legumes e fazer-se explodir com uma bomba colada ao corpo? A menos que enfrentemos o nosso lado obscuro, que enfrentemos os nossos demónios, seremos apenas metade de um ser. É o que acontece hoje em dia, em que tanta gente não chega a ser quem podia ser, porque não é capaz de ouvir anjos à sua volta pedindo: «Venham, subam para o patamar seguinte.»
Voltando à música: acha que as «remixes» electrónicas têm ajudado a música dos Doors a chegar a novas gerações?
Eu adoro «remixes» electrónicas. Quando me perguntam o que é que ouço em casa, à espera que eu responda rock'n'roll, digo que é electrónica, pois é o tipo de música que prefiro ouvir hoje em dia. Principalmente acid jazz e outras formas de jazz electrónico. Sou fã dos «remixes» dos Doors e, sim, acho que isso ajuda jovens que gostam de música de dança a prestar atenção à nossa música. Acho maravilhoso que estejamos a usar tecnologia do século XXI para dar nova vida a composições de outros tempos.
As novas reedições incluem «essential rarities». Contudo, não é a primeira vez que um «Best of The Doors» anuncia «essential rarities»...
Nem será a última vez!... (Risos) Estou a brincar... Com esta edição, atingimos provavelmente o cume da montanha. Temos uma versão num só disco, outra em dois discos e uma terceira que inclui um DVD, intitulado Watch the Doors. Por outro lado, ainda existe uma versão para «download» na Internet, com material exclusivo.
É, portanto, favorável aos «downloads»...
Claro, é fantástico. Como músico, tenho, no entanto, pena dos artistas que não estão a ser pagos pelo seu trabalho. Seria agradável para alguns receberem nem que fosse uns cêntimos de cada vez que alguém ouve uma música deles. Há oito anos, dois jovens de Los Angeles chegaram ao pé de mim na rua e perguntaram: «Você não é o Ray Manzarek, dos Doors?» Acenei que sim, e eles exclamaram: «Eh, pá, ontem fizemos um 'download' do L.A. Woman e é um disco incrível, meu!» Respondi: «Obrigado pelo elogio. Agora passem para cá um dólar, que é quanto recebo de cada vez que um disco desses é vendido.» Ficaram com cara de parvos. Estava a brincar com eles, mas imagine que eu era um músico cuja carreira estava apenas no início. Como faria para pagar a renda de casa? Para comprar comida? Para pôr gasolina no carro? Hoje tende-se a pensar que a música é gratuita, que é um direito adquirido, mas os músicos precisam de ganhar a vida, não lhe parece?
Acredita no futuro da indústria discográfica?
Não me parece brilhante. Estão com um grande problema em mãos, e só dou graças a Deus por não me ter de preocupar com isso.
Como vê, hoje em dia, discos como «Other Voices» e «Full Circle», publicados já depois do desaparecimento de Jim Morrison?
Acho que são bons discos. Estou até a pensar fazer «remixes» com eles e tocar alguns dos seus temas ao vivo proximamente. Ando à procura dos «masters» originais desses álbuns e até agora já consegui dois terços das gravações. Se tivessem a voz do Jim Morrison, teriam sido grandes discos. O único problema deles é o cantor, que, no caso, fui eu. (Rindo) Não se pode fazer tudo bem.
E «An American Prayer»?
Não sei se me fica bem dizer isto, mas acho que é o melhor disco de poesia jamais realizado. E eu ouvi, e ouço, muitos discos de poesia. Dos tempos da «beat generation», mas não só. Gosto particularmente de Lenny Bruce, o indivíduo mais cómico que alguma vez pisou o planeta e talvez o único que esteja à altura de An American Prayer. O que procurámos fazer foi uma espécie de emissão de rádio, baseada em A Guerra dos Mundos, de Orson Welles, e acho que fomos bem sucedidos. Jim lê os poemas, mas nós juntámos música, efeitos sonoros e histórias para contar a história de uma vida em cinco blocos separados que acompanham uma existência, desde o pré-nascimento, quando ao som de música dos nativos norte-americanos Jim clama: «Awake!» É como se os espíritos estivessem a chamar a alma, para voltar a existir. «Shake dreams from your hair, my pretty child, my sweet one. Choose the day and choose the sign of your day...» O disco prossegue com o nascimento, a infância, a escola, a vida pública... É um disco maravilhoso.
Acredita que temos uma alma imortal?
Claro que somos imortais, mas não enquanto indivíduos. Não acredito que Ray Manzarek existia antes de vir ao mundo e vá viver para sempre. Acredito, isso sim, que existe um oceano, e nós somos um simples copo de água. Ou melhor: nós somos a água dentro desse copo, e quando morremos essa água é derramada no oceano, dissolvendo-se nele. Nessa altura deixa de haver Raymond Manzarek. Penso que esta teoria é mais excitante e maravilhosa do que as que defendem católicos e muçulmanos. Quando morremos, passamos a estar em todo o lado para sempre, não ficamos no céu a tocar harpa para a eternidade. O que seria chato, até porque de certeza que não nos deixam fumar charros de marijuana no Paraíso. Do meu ponto de vista, tornamo-nos energia pura. Está a ver? É isto que o LSD faz: abre-nos as portas da percepção e percebemos que somos Deus. O que é Deus? Deus é energia, a energia criadora que está em tudo o que existe. Quando fazemos música, fundimo-nos com Deus.
Nesse caso, toda a gente devia experimentar LSD?
Só quem acha que deve experimentar. Quem tiver receio não o deve fazer, porque as coisas podem correr mal. De resto, não vejo razão para não o fazer. Também se pode experimentar cogumelos, que são menos perigosos, menos violentos. O LSD é muito poderoso.
Que projectos profissionais tem neste momento?
Estou sempre a escrever e a fazer música. Acabo de publicar nos Estados Unidos um romance intitulado Snake Moon. É uma história sobrenatural que se passa na Guerra Civil americana. São 200 páginas fáceis de ler.
Já saíram críticas ao livro?
Que eu saiba só duas. São publicados tantos livros que os críticos não podem ir a todas. De qualquer modo, que raio sabem os críticos? Quando oiço a palavra crítico, saco logo da pistola. Não sei quem disse isto, talvez o Beckett. Por falar nele, em À Espera de Godot há uma cena em que Didi e Gogo se insultam mutuamente, com palavras cada vez mais contundentes, até que um deles chama ao outro «crítico». Para voltar aos meus projectos, há pouco tempo fiz outro álbum de poesia com um amigo inglês. Ele lê os seus poemas e eu toco piano. Também estou a trabalhar com um guitarrista da Califórnia do Norte num disco de baladas instrumentais chamado Ballads Before the Rain. Inclui temas do Satie, Manuel de Falla e também originais. Por outro lado, Robbie e eu vamos continuar a tocar música dos Doors com os Riders On The Storm. Ian Asbury voltou para os Cult, e temos um novo vocalista chamado Brett Scallions, de uma banda chamada Fuel. Estamos a planear uma digressão pelos Estados Unidos e Canadá já em Maio. Em Junho estaremos de regresso à Europa, mas não sei se voltaremos a actuar em Portugal.
Fez um filme intitulado «Love Her Madly», que está editado em DVD na Eagle Vision. Tenciona fazer mais algum?
Nem pensar. Dá muito trabalho, é demasiado stressante. Os filmes que me interessariam fazer nunca dariam lucro, e se não temos um projecto capaz de gerar muito dinheiro ninguém investe em nós. Estar vivo, ler, fazer música basta-me. A minha mulher e eu vivemos na Califórnia, na zona do vinho, onde tomamos conta da nossa pequena quinta. Isso chega-nos. Já me sinto realizado artisticamente com o que faço.
Não resisto a perguntar-lhe: como vão as coisas com John Densmore?
Poderiam estar melhor. E ficarão melhor no futuro, tenho a certeza, assim que nos virmos livres deste processo judicial, o que deverá acontecer até final do ano. Quando a parte técnica do processo estiver resolvida, tudo voltará ao normal. Continuamos a convidá-lo para vir tocar connosco, pois estamos a divertir-nos muito com os Riders On The Storm. Aposto que o John nunca esteve em Portugal. E nós já lá estivemos duas vezes. Grande país, boa comida, toda a gente fala inglês, e o público é muito intenso. Ele nem imagina o que está a perder!