quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Orchestra Baobab



No final dos anos 60, alguns ministros e empresários do Senegal decidiram criar um clube chique onde pudessem descontrair da árdua tarefa de governar o país. O luxuoso espaço incluía um bar americano, um restaurante e uma discoteca chamada Baobab. O projecto implicava obviamente a existência de uma orquestra de baile e como o dinheiro não era problema, reuniram-se os melhores instrumentistas da nação (e também de alguns países vizinhos) para criar a orquestra ideal. Com o seu bem doseado e inédito «cocktail» de ritmos enraizados no folclore local mas impregnados de influências cubanas e (mais tarde) de uma liberdade «swingante» próxima do funk-jazz que se praticava do outro lado do Atlântico, a Orchestra Baobab rapidamente se tornou num êxito em toda a região. Já na década de 80, contudo, com a chegada do m’balax e de novas vedetas como Youssou N’Dour, a Baobab passou de moda e desfez-se. Em 2001, quando já ninguém se lembrava deles, Nick Gold, o «inventor» do Buena Vista Social Club, foi à procura dos sobreviventes da banda para os «ressuscitar», reeditando Pirates Choice, um álbum de 1982 que fez furor na Europa. Seguiu-se, um ano depois, Specialist in All Styles onde a sua mistura de sabores e aromas afrocubanos voltou a operar milagres nas listas de vendas.
Em vésperas de se deslocar a Portugal para um concerto no Festival Músicas do Mundo de Sines 2008, Barthelemy Attisso (o segundo a contar da direita na foto), guitarrista e líder da banda, contou-me a história da banda.

Como muitas outras músicas africanas, a música senegalesa tem origem nos cantos dos griots. Sentem-se herdeiros dessa tradição?
Não sou um griot, embora o meu amigo Ndiouga Dieng o seja. Ele começou por vir substituir Laye Mboup, que nem sempre aparecia quando era necessário, e acabou por ficar. Mountaga e Thierno vêm de uma família de griots, mas nunca chegaram a sê-lo verdadeiramente. A Orchestra Baobab é uma mistura de culturas e influências muito diversas, o que o nosso som reflecte como sabe. Embora não seja necessariamente a minha filiação, orgulho-me da contribuição que a Orquestra Baobab tem dado à herança griot através dos discos que tem gravado.

Pode contar-me a sua versão da criação da Orquestra?
Vim do Togo para Dacar, em 1960, para entrar na Faculdade de Direito. Dediquei-me à música principalmente para financiar os meus estudos, mas acabei por me apaixonar por ela. Durante o dia ouvia rádio e praticava sempre que tinha um momento livre o estilo afro-cubano porque estava muito em voga em Dacar na altura. Eu tinha um pequeno gravador com o qual gravava as canções que queria aprender. Ao fim de algum tempo, já conseguia acompanhar a maioria dos temas que passavam na rádio. No ano a seguir à minha chegada, fui contratado por um clube onde me pagavam um salário mensal. Obtive assim uma «bolsa» própria e pude voltar para a Universidade a fim de completar os meus estudos. Entretanto, tinha perdido um ano e meio, mas valeu a pena. Estudava de dia e tocava à noite, sem grande dificuldade. Quando tive a certeza de que já era um guitarrista razoável, fui ter com um conterrâneo, o meu amigo Emmanuel que tinha uma banda, Le Standard, e que me deixou tocar com eles de vez em quando. Quando um dos membros do grupo se foi embora, fiquei com o lugar dele. Foi assim que me tornei guitarrista rítmico. Mais tarde, Rudy Gomis, Balla Sibidé e eu próprio, deixámos Le Standard para ingressar na Ibra Kasse’s Star Band que tocava no Club Miami, e que na altura era considerada a melhor banda do Senegal. Essa banda revelou-se uma verdadeira escola, pois tínhamos que ensaiar duramente para dominarmos todos os estilos que o povo queria ouvir. Era um trabalho muito exigente, mas compensador. Ganhávamos ali mais do que os outros músicos, mas quanto melhor fossemos mais recebíamos, o que era um poderoso incentivo. Até que um dia recebemos a proposta do Clube Baobab, em 1970, que era ainda mais interessante financeiramente. No ano seguinte, «desviámos» do Miami mais alguns colegas e formarmos a Orchestra Baobab. Na Star Band o nosso repertório era limitado, pois era o nosso patrão Ibra Kasse quem o escolhia. Era ele também quem nos dizia como tocar. O tipo de som, o volume, era tudo decidido por ele. Teve um lado positivo, pois habituou-nos a uma certa disciplina. Mas quando chegámos à Baobab encontrámos a liberdade para escolher o nosso repertório, o que também tinha as suas vantagens. Ensinou-nos a assumir responsabilidades e permitiu-nos rasgar novos horizontes. Os anos 70 foram a era do rythm’n’blues, do soul e do reggae. Tínhamos que mostrar que éramos capazes de nos manter actualizados e isso permitiu-nos abordar todos os estilos e fazê-lo bem.

Nos anos 80 chegou o m’balax e a nova moda pôs fim ao vosso grupo...
Penso que a população senegalesa precisava de uma mudança. Quando chegou o m’balax, que veio em força, com a sua renovação percursiva, o povo adorou. De repente, ficámos fora de moda, é verdade. As pessoas tinham estado a ouvir música estrangeira durante muito tempo e tinha chegado a altura para ouvirem música senegalesa. Diz-se que foi Youssou N’Dour quem «matou» a Baobab. Não é verdade, ele apenas estava a fazer a sua música. Os tempos tinham mudado, as pessoas seguiram-no, mas ele não pediu a ninguém para deixar de ouvir a Orchestra Boaobad!

Nick Gold, o director da World Circuit, organizou o vosso regresso em 2001, depois do sucesso do «Buena Vista Social Club». Como é que isso aconteceu?
Quando a orquestra se desfez, cada um de nós foi para o seu lado e eu pus a minha guitarra de lado. Comecei a trabalhar na Universidade como director do Centro das Obras Uni versitárias de Dakar. Era uma grande responsabilidade. Mais tarde, regressei ao Togo para mudar de cenário. Tornei-me assim advogado. Não era mau. É uma profissão que exige muito rigor e seriedade. Estava no meu escritório de advogado em Lomé quando Balla Sibide me telefonou para me dizer que precisavam de mim. «Porquê?», perguntei eu. «Porque fomos convidados para gravar um disco em Londres e precisamos da orquestra toda para o faze»r, respondeu-me ele. «Quando?», quis eu saber. «Logo te avisaremos quando chegar a altura, para já apenas queria saber se estás disponível». Sem mesmo pensar no assunto, respondi: «Claro. É fantástico, claro que irei, claro, claro.» Quando voltei a casa nessa noite pensei que tinha sonhado. A Orchestra Baobab reunida novamente depois de tantos anos? Não era possível! Fui buscar a guitarra para tentar perceber se ainda era capaz de tocar aquelas coisas todas. E tive uma surpresa desagradável. Estava tudo fresco na minha cabeça, mas os meus dedos não eram capazes de executar o que eu pedia deles. Quase endoideci de raiva. Por fim acalmei e desabafei com a minha mulher, que me lembrou que sou um homem com muita força de vontade. Ganhei forças e comecei religiosamente a praticar na guitarra, todos os dias, tal como tinha feito no passado. Sete meses passaram, durante os quais, pouco a pouco, a confiança foi voltando. Quando cheguei a Dakar, toda a gente estava à minha espera. Entrámos para o estúdio e tudo correu sobre rodas.

Prefere então ser músico a ser advogado?
É verdade. Suponho que sou uma das poucas pessoas no mundo que é advogado e músico ao mesmo tempo. A música ajudou-me a ter sucesso na vida. Foi graças a ela que pude estudar. Gostaria de nunca ter parado de tocar. Adoro a música. Dá-me prazer e cura-me de todos os males. É a minha terapia, o meu remédio. Quando toco as dores desaparecem. E agora descobri que posso fazer as duas coisas em simultâneo, ser advogado e músico. Isso faz-me muito feliz.

Está com 60 anos. Qual foi a principal lição que aprendeu na vida?
Se me tivessem dito há uns anos como seria a minha vida hoje, nunca teria acreditado. As coisas correm-me muito melhor do que alguma vez esperei. Mas se tivesse sabido que seria tão difícil retomar a guitarra após uma paragem de 15 anos, nunca o teria feito.


O seu companheiro Rudis Gomis disse-me um dia: «Attisso vinha do Togo e não queria prescindir das suas raízes musicais, eu vinha da Guiné e também não… a nossa fórmula é como a da Coca Cola, toda a gente conhece os ingredientes mas não as dosagens.»
Muitas pessoas perguntam como conseguimos mantermo-nos em actividade passados tantos anos e com uma música que se mantém relevante. Eu penso que é porque nos mantemos autênticos e não acreditamos naquilo que fazemos. O que Rudy diz é verdade: embora as nossas influências estejam à vista de todos, ninguém soa como a Orchestra Baobab. Sempre fomos especialistas em todos os estilos. O mais espantoso é que desde o nosso «come-back» vendemos mais discos do que alguma vez fizemos no passado. Enquanto banda, pensamos que ainda temos um longo caminho pela frente. Temos ainda muitas canções para gravar, tanto antigas como novas.

«Made in Dakar», o vosso último álbum é a celebração de uma cidade que já não existe?

Dakar, como todas as cidades do mundo, está em permanente mutação. Dito isto é verdade que o título se refere principalmente ao Dakar dos anos 70, altura em que a Orchestra forjou o seu estilo que ainda hoje, em 2008, nos distingue de todos os outros. Por isso, Made in Dakar tanto se refere ao Dakar dos anos 70 como ao de hoje.

Quem são os seus heróis musicais?
Quando comecei a tocar procurava imitar as orquestras que tinham sucesso no Senegal. Depois comecei a ouvir músicos de outros países africanos, como Franco e alguns músicos do Gana que tocavam na altura uma música muito sofisticada, com a qual aprendi muitíssimo. Mais tarde, comecei a ouvir Django Reinhardt, B.B. King, Wes Montgomery e Carlos Santana, que são os músicos que continuo a preferir. Mas ouço tudo o que posso, seja na televisão ou nos festivais onde vamos tocar.