quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A Naifa



O meu encontro com A Naifa deu-se em Abril de 2008, já João Aguardela estava doente com cancro (faleceu, aos 39 anos, no dia 18 de Janeiro de 2009). A banda estava a lançar Uma Inocente Inclinação Para o Mal, o seu terceiro opus em seis anos. A conversa (bem afiada) decorreu com Luís Varatojo e Maria Antónia Mendes (na foto), dois dos fundadores da banda pop mais fadista de Lisboa.

«Canções Subterrâneas», o vosso primeiro álbum, apareceu em 2004. «Três minutos Antes da Maré Encher», em 2006. E em 2008 surge este «Uma Inocente Inclinação Para o Mal». Esta impressionante regularidade é premeditada?
LV: Aconteceu naturalmente. Quando fizemos o primeiro nem sabíamos se íamos fazer mais algum. Depois de um disco, fazemos uma digressão e isso acaba por marcar o ritmo do processo. O ano passado, para além dos espectáculos em Portugal, actuámos em Madrid e também num festival de músicas do mundo em Marrocos… Só depois começámos a trabalhar no disco que acabou por sair agora, em 2008.

MAM: Na estrada, passamos muito tempo juntos e começamos logo a magicar o que vamos fazer a seguir. Foi durante a digressão que traçámos em linhas gerais o que devia ser o disco.

Que linhas gerais?
MAM: Decidimos que ao contrário do que aconteceu com o anterior álbum, iríamos escolher apenas um autor para os poemas todos. E que os poemas deveriam ser escritos de propósito para serem transformados em canções.

Como é que escolheram esse autor, que neste caso é uma mulher?
MVM: Uma noite estávamos num concerto em Tondela, no ACERT, e no habitual convívio que se segue, o João, numa conversa com um grupo de raparigas que tinham vindo dizer-nos que tinham gostado muito do concerto, acabou por lhes fazer a confidência de que estávamos a pensar, no próximo trabalho trabalhar apenas com um autor. E uma das raparigas perguntou se podia experimentar. O João deu-lhe a morada e assim foi. Estávamos já a encetar alguns contactos com outros poetas, quando recebemos uma remessa de poemas dela. De imediato, achámos os três que era aquilo que procurávamos. Pedimos-lhe para escrever mais poemas e ela continuou a acertar com o ambiente certo.

Em que poetas tinham pensado inicialmente?
LV: O Nuno Moura, que tem poemas nos nossos dois primeiros discos, foi o primeiro da lista. Também nos passou pela cabeça o José Luís Peixoto e a Adília Lopes, com quem já trabalhámos anteriormente. A Maria Teresa Teixeira acabou por ser um feliz achado que nos chegou em folhas dactilografadas. Quando começámos a ver, vimos que tínhamos ali praticamente um disco. Exclamámos: «Isto parece uma fotografia à Naifa».

Que idade é que ela tem? O que é que ela faz?

MVM: É uma personagem mistério. Sabemos pouco sobre ela e isso também tem alguma piada.
LV: Posso dar mais algumas pistas. Ela tem trinta e tais… Já escreveu para televisão e publicidade, mas cansou-se disso e neste momento está em Barcelona. Está um pouco naquela base de não querer ser chateada.

O que é certo é que acaba por ser uma das protagonistas deste disco…
LV: Mesmo que não fosse um disco da Naifa, eu acharia que estas letras são muito fortes. É uma escrita tão simples, com a nossa linguagem do dia a dia, e ao mesmo tempo…
MVM: … é muito contemporâneo, muito fadista.

Agora que o disco está aí, como o vêem?
LV: Acho que este disco é muito diferente dos anteriores. Rompe com os outros dois, exactamente pela forma como foi feito. Pelo facto dos poemas terem sido escritos já a pensar em música. Isso nota-se por serem mais arrumadinhos que os anteriores. Rimam todos mais e percebe-se que ela estava a pensar em música quando os escreveu. Esse facto arrastou o trabalho dos arranjos, a estrutura das próprias canções e o resultado final é bastante diferente, sem perder a identidade do grupo. Quando publicámos o primeiro disco, apresentámos algo de verdadeiramente novo. E ainda há muita gente que nunca ouviu isto. Isto ainda é um animal muito raro. Nós não temos cabidela nas rádios. Ou em muito poucas rádios. Nós achamos a nossa música popular, completamente acessível.

Porque decidiram fazer diferente?
LV: Tivemos que fazer essa aposta, esse jogo, porque também queríamos que o resultado final nos surpreendesse. Quando fizemos o primeiro disco, ficámos sem saber o que aquilo ia dar até à altura das misturas finais. Só quando aquilo ficou misturado é que conseguimos arranjar salvação para o assunto. E acabou por dar música, por soar bem aos ouvidos. No segundo disco já não foi tanto essa surpresa. O disco foi feito mais ou menos da mesma forma e para nós foi mais previsível. Por isso, decidimos de alguma forma pregarmos rasteiras uns aos outros. Mudar o método de trabalho e de funcionamento. Porque é assim que as coisas se vão descobrindo. Fazer as coisas de outra forma para atingir resultados diferentes. Os poemas continuam a liderar a audição, mas fizemos um disco com ainda mais cores que o anterior.

Como é que cada um de vocês interpreta o título?
LV: Acho que é um bom título para aquela série de episódios, de 14 canções que são verdadeiros episódios. É o título de uma série, como Sete Palmos de Terra. Aquela última frase do disco, pareceu-nos ser um bom título porque faz um apanhado da história toda.
MVM: Se nos pedissem para resumir o disco todo numa única frase, a frase só podia ser esta: «Uma suave inclinação para o mal».

O mercado está cada vez mais difícil, e outros projectos colectivos ficaram pelo caminho entretanto. O que é que vos mantém unidos e, apesar de tudo, optimistas?
MVM: É verdade, as coisas estão a mudar. Quem quiser continuar a fazer música, tem que se adaptar. E se é certo que o mercado dos CD está em crise, há muitos festivais, há muitos sítios onde ir apresentar o seu trabalho.
LV: Até porque as pessoas ouvem cada vez mais música. Vendem-se é cada vez menos discos.

Para uma banda que não vende muito, não é dramático saber que as pessoas vão obtê-lo à borla?
MVM: Eu pessoalmente não acho. Como não vendemos muito, não estamos dependentes disso. Não vou tecer nenhum comentário em relação à pirataria, mas o que dá sentido à minha passagem pela Naifa e à vida da Naifa são os concertos ao vivo. Faz sentido fazer os discos, para depois lhes dar vida ao vivo.

Isso quer dizer que não gostam muito do trabalho de estúdio?
MVM: O trabalho de estúdio é bom. Uma coisa não faz sentido sem a outra. Não faria sentido, depois de ter este trabalho todo a criar as canções ficar simplesmente à espera que as pessoas comprassem o disco. Nós normalmente, mal lançamos o disco, saímos para digressão.
LV: É muito importante porque é ali que as pessoas fazem. É a parte do sofrimento. O trabalho criativo leva-nos mais ou menos um ano.

É cada vez mais fácil ou cada vez mais difícil?
LV: É mais fácil. Até porque hoje em dia já se fazem os discos com poucos meios.

Não estou a falar dos meios tecnológicos mas da criação pura.
LV: Nesse aspecto, é sempre difícil. É sempre difícil e é sempre fácil. É sempre assim uma coisa estranha. Às vezes é um sofrimento, outras sai logo. Às vezes, penso: levamos um ano a fazer um disco, com muito sofrimento, e mal pomos cá fora o CD, está logo copiado. Como se aquele trabalho não valesse nada.

Entre os vossos antepassados, entre aspas, estão António Variações e Sétima Legião. Agora há pelo menos um descendente, Novembro? Que pensam do trabalho dele?
LV: O que nós sentimos é que devia haver muito mais gente a trabalhar a música portuguesa, a tentar explorá-la e a abrir caminhos. Ouvir música portuguesa devia ser aqui tão normal como é em Espanha, por exemplo. Há «n» propostas modernas à volta do flamenco tradicional, do tango, da música africana…
MVM: A própria música brasileira.
LV: A música brasileira, então, é o melhor exemplo. Isso devia ser feito, devia ser normal.

Porque é que, na vossa opinião, isso não é feito?
LV: Porque se apagam as memórias. A maioria dos putos, na altura de começarem a fazer coisas, nem sabem o que é música portuguesa porque nunca a ouviram na rádio, porque vão às prateleiras das lojas e não a têm disponível. Quando estive na Fnac de São Paulo, a secção de música brasileira fazia duas ou três vezes a de pop-rock internacional. Aqui é ao contrário: nas Fnac portuguesas, o canto da música portuguesa é cada vez mais pequeno. Se a música não está viva, se não se mexe nela, se não se fazem novas abordagens e propostas, é claro que o público também estagna. Quem conhece música portuguesa são os meus pais, que têm 60 anos. Depois há umas franjas muito pequenas que sabem quem é o Sérgio Godinho, o Fausto ou o António Variações, embora este último tenha sido objecto de uma campanha de marketing ultimamente.
MVM: No caso do Variações foram mais publicitados os projectos que o cantavam…
LV: Depois há aquele problema que, às vezes se depara com a Naifa. Isto não é a música portuguesa pura, dizem uns, enquanto para os outros isto também não é rock, é uma música armada em fado. E ficamos ali no limbo. Ora quando fazes este tipo de experiências, é aqui que andas, normalmente. Ora isto constitui também um perigo e uma intimidação às pessoas que fazem música. Por isso não arriscam e, ou fazem fado tradicional, que está bastante bem visto, ou então fazem rock cantado em inglês. É por isso que a nossa música moderna vai aparecendo aos repelões. Daí teres falado em antepassados, por não haver uma continuidade. Ou houve muito pouca.

Que fazem quando não fazem música?
LV: Muitas coisas. Muito tempo, estou ligado a isto. Quando não faço música, preparo as coisas, dou andamento a outras, para que se possa fazer música. Estou também agarrado à parte de escritório, de programação, de contactos. Depois dou umas aulas, na Restart e na Etic. A Mitó é que tem uma profissão engraçada.
MVM: Eu não vou dizer, não vale a pena estar a misturar as coisas.

Ora essa!
MVM: Embora não esteja actualmente a trabalhar nessa área, também estudei teatro e continuo ligada a essa área. Além disso, sou licenciada em medicina tradicional chinesa e tenho um consultório, onde faço acupunctura. Pode parecer um bocado inusitado, mas é também uma área artística, artístico-científica se quisermos, porque nós, na medicina chiens,a encaramos cada pessoa como uma situação absolutamente única e, logo, com um tratamento único. Portanto, preparar um tratamento é como fazer uma música nova.
LV: Além disso, sabes promover isso bem.
MVM: É verdade. Nunca fiz dois tratamentos iguais, é quase como uma obra de arte.

Apesar de tudo, estão optimistas quanto ao futuro…
LV:
Temos mesmo que ser. A vida é curta, temos que fazer aquilo que nos dá prazer. Fazemos realmente aquilo que queremos e depois disponibilizamos. Para já, neste percurso da Naifa, temo-nos dado bem com esta filosofia.