quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Adriana Calcanhotto



Maré
Sony BMG, 2008

Filha de um baterista de jazz que chegou a acompanhar a lendária Elis Regina, Adriana Calcanhotto deu os seus primeiros passos como cantora em pequenos bares de Porto Alegre, apenas acompanhada pela sua guitarra. Já no Rio de Janeiro, gravou em 1990, o seu primeiro álbum, Enguiço. Senhas, o segundo disco, valeu-lhe alguma notoriedade, nomeadamente porque o tema título foi escolhido para a banda sonora de telenovela Renascer. Desde então a sua popularidade, tanto no Brasil como em Portugal, tem vindo a crescer e o seu álbum Adriana Partimpim (publicado em 2004) ficou quase um ano na tabela dos discos mais vendidos em Portugal. Hoje é, consensualmente, um dos nomes mais importantes da nova música popular brasileira. Esta entrevista teve lugar em 2008, quando Adriana veio a Lisboa lançar Maré, o segundo momento de uma trilogia iniciada com Maritmo (1999).

De quem foi a ideia de receber os jornalistas no Oceanário?
A ideia foi minha porque sempre que venho a Lisboa, eu venho para o fundo do mar (risos).

Fale-me dessa sua relação tão especial com o mar.
É difícil explicar, mas o mar foi uma das coisas que me fez morar no Rio de Janeiro. Eu nem preciso ir à praia, basta-me saber que o mar está ali para me confortar. Essa minha relação com o mar tem vindo a ficar cada vez mais forte, mais intensa. Interessa-me muito o mar metafórico, o mar da literatura…

Depois de um sucesso tão retumbante como foi «Adriana Partimpim», porque decidiu retomar um tema que já tinha tratado há dez anos com «Maritmo»?
Na verdade não tomei a decisão de fazer um disco assim ou assado. Comecei a seleccionar canções, como sempre faço… As canções foram chegando e fui-me dando conta que o disco seria assim, por causa das canções que chegaram. Uma das primeiras canções que me fez perceber isso foi a música «Mulher sem razão», uma parceria de Dé Palmeira, Bebel Gilberto e Cazuza, parceria essa que eu já tinha gravado no Maritmo. Quando a mãe do Cazuza me ligou para me propor eu cantar essa canção, achando que eu não a conhecesse talvez, sem saber que eu tinha uma ligação muito forte com a música, percebi que era um espelhamento, uma continuação do Maritmo. Foram coincidências assim, que foram acontecendo, que me deram a ideia de fazer uma trilogia. Quando fiz o primeiro disco eu fiz apenas um disco sem pensar que tinha continuação.

Nesse caso, porquê esta ideia da trilogia quando, tanto quanto sei, nem sequer sabe ainda como vai ser o terceiro momento…Nem sei se vou conseguir fazer. Achei interessante. Como é um assunto inesgotável, fico com a sensação de poder voltar ao tema. Por outro lado, sendo este segundo, ele fica intermediário e abre a possibilidade de um terceiro que seria um fecho.

É próprio da maré ser um movimento de fluxo e de refluxo. Há marés baixas e marés altas e em Portugal até se diz que há mais marés do que marinheiros… está numa boa maré neste momento?
Excelente.

O movimento das marés está muito ligado às fases da lua…
Todo o conceito do disco, das canções, dos poemas, dtodo esse universo tem a ver com a lua. Tem «A noite escura» do Torcato Neto, a noite escura do Waly Salomão… acho que é a lua que torna este disco feminino.

De resto no disco há canções mais lunares, mas outras são claramente solares como «Três» ou «Um dia desses». Como pessoa, sente-se mais lunar ou solar?
Lunar e solar, conforme a maré (risos).

O disco tem apenas 11 canções e dura pouco mais de meia-hora. É tanto mais surpreendente porque, tanto quanto sei, tinha à partida 20 canções ou mais.
Que aconteceu às outras canções?

Em determinado momento tive repertório para um álbum triplo, mas as canções foram caindo. Algumas até com bastante aperto no coração, porque me apego às canções e livrar-me delas não é fácil. Mas é o meu processo de trabalho. Em compensação, é muito interessante o que acontece naquele quebra-cabeças, no jeito como as canções ficam entremeadas. Por isso, eu tirei canções até ao último dia. No próprio dia em que o disco foi para a masterização e que ficou decidida a ordem das canções, ainda tirei uma.

E porquê? Porque é que a tirou?
Porque eu tinha a intenção de fazer um disco muito conciso. Eu estava muito apegada a algumas canções, mas elas não eram especificamente para este projecto. Servirão talvez para um próximo. Por vezes, a gravação não fica tão bem como eu gostaria, mesmo quando as toco durante meses. Às vezes passa do tempo, a canção perde espontaneidade de tanto que a cantei. Há muitas razões.

O facto de querer um disco conciso, tem a ver com o facto de pensar que hoje em dia as pessoas não têm tempo para estar uma hora ou mais a ouvir um disco?
Tem mais a ver com o meu temperamento. Os meus concertos sempre foram mais para o curto. E sempre quis fazer discos mais curtos do que os primeiros que fiz.

Já que falamos de concertos, pode adiantar-me como vão ser os seus concertos aqui em Portugal?
Tenho uma banda que tem músicos que participaram no disco, como o Domenico Lancelotti e o Alberto Continentino. Os outros dois são Marcelo Costa e o Bruno Medina que é o teclarista dos Hermanos. E temos uma coisa interessante que são duas baterias tocadas uma de frente para a outra. Musicalmente os arranjos vão ser diferentes do disco, adaptados ao palco, até porque os músicos que tocaram no disco são músicos inventores e não é coisa que você peça a alguém para reproduzir igual. A banda do concerto já reinventou os arranjos do disco, o que é interessante porque já é um outro passo, para além do disco.

Há uma envolvente cénica, figurinos…
Vamos ter figurinos e cenário alusivos ao tema. Um cenário criado pelo Hélio Bauer com base em imagens de Creta, do século XV antes de Cristo, com polvos e golfinhos. O cenário tem véus com neve marinha que é a matéria orgânica que desce lentamente até às regiões abissais, onde os seres não se movem por questões de energia…

Como o disco só tem 34 minutos, vai recorrer a canções de «Marítimo»?
Vou repegar algumas canções do Maritmo para que o diálogo entre os dois discos se dê no palco. «Vambora», certamente. «Asas» que é uma parceria minha com Cícero e um poema que acabou por não entrar neste disco da Fiama Hasse Pais Brandão chamado «Poética do eremita», que interpreto no violoncelo.

Não se sentiu tentada a utilizar os poemas da Sophia de Mello Breyner?
Até olhei para o livro dela, mas o que aconteceu foi que no momento em que estava fechando o meu repertório a Maria Bethânia estava a trabalhar no seu disco, que tem vários poemas da Sophia. E eu tinha musicado este poema da Fiama para um outro projecto de língua portuguesa que fiz para a Fundação Gulbenkian em Paris. É um repertório que começa com uma canção provençal e desenha um arco no tempo atravessando a língua portuguesa, com canções passando por Portugal, Moçambique, Angola. O poema da Fiama fala de mar e de pedras que já tiveram, como ela diz, a qualidade húmida de ter estado ao pé do mar. Eu gosto muito que os concertos tenham alguma independência dos discos.

Com o Moreno, o Domenico e o Kissin arranjou ali uns cúmplices ideais para a sua música, ao nível da cumplicidade que já tinha com o Dé Palmeira.
Há uma identificação e muita admiração também. Quando ouvi os discos que eles fizeram, primeiro o do Moreno, depois o do Domenico e por fim o do Kissin, fiquei a pensar que eles tinham feito coisas que eu mesmo gostaria de ter feito, mas não saberia como. Aquilo para eles é muito fluído, muito natural e com o Dé também, mas com o Dé já estava trabalhando, somos parceiros, temos feitos algumas canções juntos.

A Adriana andou em digressão com o trio, num projecto chamado «+Ela». Como é que surgiu isso, foi a Adriana que pediu?
Começou com convites deles, e mais uma vez isso foi aumentando. Da primeira vez cantei quatro músicas com eles, depois ensaiámos mais duas e mais tarde outras, até que quando eu, finalmente convidei o trio, tínhamos repertório para fazer um concerto dos quatro, que apresentámos em Espanha e no Japão.

Não há esperanças de ver esse concerto em Portugal?
Aquilo foi uma coisa específica, mas é possível, acho que sim. Só que os nossos concertos nunca foram o mesmo concerto. Tínhamos músicas a mais e mudávamos as canções de uma data para a outra. Hoje em dia, sou parceira dos três e com o Dé. Eles são a base deste disco e estão presentes em todas as canções. Em estúdio estabelece-se uma relação diferente.

Com tanto talento musical junto, porquê ir buscar um produtor como Arto Lindsay? Que mais valia trouxe ele ao disco?
Eu tenho uma profunda admiração por aquela guitarra dele. Para além disso, sempre fui fã dos seus discos e queria muito tê-lo como produtor. Na realidade, enquanto produtor, ele deixou as coisas todas fluírem. A nossa ligação musical, a nossa intimidade veio ao de cima no estúdio, para onde entrámos mal regressámos da tournée. A sintonia era muito grande. O papel do Arto limitou-se a deixar que as coisas acontecessem. Tocámos o que quisemos, conforme o feeling de cada um e as faixas foram sendo construídas à medida que íamos tocando.

Aliás, nota-se que há uma simplificação dos processos neste disco, se comparado por exemplo com o «Maritmo», que é um álbum mais rebuscado ao nível dos arranjos.
É. Eu não tinha nenhuma ideia à priori, queria apenas que eles trouxessem os instrumentos que quisessem, que os tocassem como muito bem entendessem. Eu não gosto muito de ter um método, para não gravar um disco que seja sempre igual. Não gosto de repetir. Chamei estas pessoas e fiquei aberta para as suas inventivas. E tinha um repertório. Eu tocava-o no violão e eles tocavam comigo o que queriam. Algumas canções eles conheciam, outras não. E trabalhei-as com eles, ali no estúdio. Eu não quis fazer algumas canções nos concertos porque agora as pessoas gravam os concertos e mal chegam a casa colocam-nas na Internet. Eu sempre gostei de saltar no escuro e de cantar coisas inéditas em concerto, mas hoje em dia não posso fazer isso: entregar as canções assim de bandeja.

O que é que sente em relação a isso? Ao seu trabalho ser posto logo, no dia a seguir, à borla, para toda a gente ouvir?
É a democratização da Internet. É interessante. Não quero me queixar, mas acho terrível quando uma coisa ainda não está bem pronta e já está no mundo. Isso, às vezes, dá uma aflição. Hoje em dia, quando canto uma canção nova num concerto, canto-a de uma maneira praticamente disfarçada no meio de outras coisas para passar despercebida (risos). Por isso é que no Brasil houve muita especulação sobre o repertório.

Porque é que decidiu apresentar o disco em Portugal, antes de o fazer no Brasil?
Aconteceu assim, mas na verdade eu acho que é pertinente. Eu gosto da ideia, acho que está certa.

Porquê? Porque a sua relação com os portugueses tem vindo de resto a crescer muito nos últimos anos.
Muito. Tanto que foi interessante fazer esse trabalho para a Gulbenkian que é uma coisa sobre Portugal e a língua portuguesa e que nem veio para cá ainda. Um dia gostaria de trazer cá esse projecto porque acho que ficou muito bonito. Foi feito para uma noite única, mas resultou de um trabalho de pesquisa imenso. Muito prazeiroso de fazer e tocar.

Tem muita coisa para trazer, então: este projecto, mais os concertos com o trio Moreno, Domenico, Kissin… Já alguma vez lhe passou pela cabeça vir viver para Portugal?
Para ser sincera, ainda ontem pensei nisso, quando aqui cheguei, porque estava com muitas saudades de Lisboa. Mas não sei, porque gosto muito do Brasil. Gosto muito de morar no Rio e nunca tive verdadeiramente a ideia de morar fora. Mas Portugal, para mim, não é fora. Sinto-me em casa aqui. Vamos ver o que acontece…

As letras que canta, mesmo quando não são escritas por si, dão a ilusão de serem confessionais. Mas no fundo sabe-se muito pouco sobre si, sobre a sua vida e intimidade. Esconde-se atrás da música que faz?
Não me escondo. Mas gosto de me apropriar. Por isso é que a minha carreira, quando eu fazia música ao vivo todas as noites, fracassou. Porque se eu não me apropriar da canção, se não parecer que é minha, não faz nenhum sentido para mim.

O que é que faz quando não faz música?
Leio poesia, vou pouco ao cinema, mais ao teatro do que ao cinema. Nas férias vou para a minha casa em Angra, uma casa de pescador e fico lá lendo poesia, à beira do mar.

O disco encerra com um duo com o Gilberto Gil. Porquê? Para si era óbvio que era a canção perfeita para encerrar o disco?
É. Na verdade eu acho que o Gilberto Gil tem uma compreensão sobre o Caymi imensa. Acho que é quem melhor podia traduzir a canção dele. Imaginava isso e quando liguei para o convidar a fazer esta canção comigo, ele disse-me que estava no teatro na noite em que o Caymi a apresentou pela primeira vez. O que confirmou a minha intuição de que ele era a pessoa indicada para a interpretar comigo. Quando ele me contou isso, eu pensei, vou fazê-la com ele e ninguém mais. E tudo o que a canção do Caymi pede, tudo o que ele propõe nessa canção e na obra dele, está ali, naquele violão.

Nas fotos de promoção, surge agarrada a uma prancha de surf. Pratica surf?
Infelizmente, não. Mas não perco a esperança de vir a aprender (risos). A pergunta é interessante porque quando percebi que o Maré seria uma continuação do Maritmo e um segundo momento de uma trilogia, ele estava mais na superfície. Tinha mesmo duas canções que eram mais relativas ao mundo do surf. Tenho uma canção que se chama «O surfista» e que olha para o surfista como se ele fosse um «flaneur» das águas. Mas o disco foi indo para o fundo.

Daí estarmos aqui no Oceanário!...
Talvez o terceiro vá para a superfície. Não sei. Em todo o caso, acho a prancha um objecto muito interessante. Gosto muito de pranchas. Acho que surfar é uma coisa tão desprendida.

No «Maritmo» havia dois imensos sucessos, o «Vambora» e «Vamos comer Caetano». Neste, dá-me ideia que «Porto Alegre» e «Um dia desses» poderão ter esse papel de hits. Qual deles vai dar origem a um teledisco?
Impossível para mim, saber. Cada canção é tão diferente, cada uma remete para um universo diferente… No Brasil, a música que foi escolhida para lançar o disco foi «Mulher sem razão» e aqui em Portugal «Um dia desses». Eu gostaria muito de fazer um clip com o Manoel de Oliveira. Nesse caso, deixaria que fosse ele a escolher a música.

Este é claramente um disco de meio do caminho. Como se dissesse para si própria: Estou aqui e agora? Mas como diz a canção: «a montanha insiste em ficar parada.» Como é que vê o seu futuro?
Não estou a começar a minha carreira, nem perto de a terminar, por isso penso mais no presente do que no futuro. Não acho que haja futuro. Há presente. O Maré tem já isso embutido no nome. É o mar que é. É assim que eu estou me sentindo, presente.

O terceiro momento da trilogia não será necessariamente o seu próximo disco?
Não. De momento não tenho vontade de fazer planos. Tenho muitas possibilidades abertas. Posso fazer outro disco Partimpim, posso talvez fazer um DVD com o concerto português, posso fazer o terceiro da trilogia…

O «Adriana Partimpim» não é, então, um capítulo encerrado.
Não, desde o início. Por isso assumir heterónimo ajuda a pensar o projecto em termos de discografia. É um projecto paralelo, é apenas uma questão de vontade e oportunidade.