sábado, 21 de fevereiro de 2009
Mísia
Ritual
Erato, 2002
Paixões diagonais... Garras dos sentidos... os títulos dos discos de Mísia têm sido acusados, com alguma razão, de serem pretensiosos. Talvez por isso, o seu novo disco chama-se simplesmente Ritual. O álbum é um regresso ao fado mais tradicional, acompanhado por guitarras e violas, aqui interpretadas por velhos mestres, alguns dos quais acompanharam a própria Amália. Bastante diferente dos discos anteriores, Ritual arrisca-se a ser demolido por uma certa crítica. Até porque nos últimos tempos voltou a estar na moda dizer mal dela. Dizem que não sabe cantar. Que desafina. Que a sua pose é ridícula. Pobre Mísia. Teve de impor-se lá fora antes de se fazer ouvir cá dentro. E quando parecia que os portugueses já se tinham rendido ao seu talento, volta a ser atacada sem piedade.
É ridículo dizer que canta mal. O fado não é ópera onde a técnica vocal é determinante. O fado é música popular, toda a gente pode e deve cantá-lo. Algum do melhor fado que se pode ouvir em Lisboa é o fado espontâneo tal como se pratica nalgumas tascas da Bica, por exemplo. Tal como o blues ou a morna, por exemplo, para cantar bem fado o que é fundamental é ter sido absolutamente feliz e absolutamente infeliz. Quem nunca o foi nunca poderá cantar bem fado. Mais: nunca o poderá entender. As pessoas das meias-tintas nunca gostarão de fado, ou de blues, ou de morna.
Mísia não é obviamente uma pessoa de mais ou menos. E basta ouvi-la cantar para perceber que já foi imensamente feliz e imensamente miserável. E que ama o fado apaixonadamente. Quanto à voz, ou se gosta ou não se gosta. É verdade que a sua voz mudou. Que já não tem aquele timbre juvenil que faz hoje as delícias dos fãs de Cristina Branco ou Mafalda Arnault. A voz de Mísia neste disco está mais grave, mais madura, mais profunda. É uma voz cheia de cicatrizes, e de personalidade. Não é muito versátil, mas não há nenhum sentimento que não consiga exprimir, com uma verdade que cala fundo.
Não pensem que adoro este Ritual. Não adoro, gosto simplesmente muito dele. Mas principalmente gosto muito da maneira como Mísia está no fado e na vida. De alma e coração. Para o melhor e para o pior. Ela canta porque não já poderia viver se não o fizesse. E isso sente-se. É por isso, se calhar, que os seus discos vendem melhor no estrangeiro do que cá. Lá fora, as pessoas não têm a mania que percebem de fado e só captam o essencial: que para Mísia o fado é a própria vida e que esta música única é muito bela porque exprime o que há de mais profundo num povo. Por mim, sinto orgulho em ter embaixatrizes como esta.