
Um dos seus poemas diz: «Jornalistas trabalham em nome de ter certezas, a certeza trabalha em nome de ter sentido, mas sentido é só apontar para outra coisa e o outro por sua vez é o infinito. Se duas coisas dão as mãos, não precisa ser verdade, só bonito».
Marcelo Camelo e nasceu no Rio de Janeiro, a 4 de Fevereiro de 1978. Estudou jornalismo mas o sucesso que encontrou como músico impediu-o de acabar o curso. Até há pouco tempo era vocalista e guitarrista da banda carioca Los Hermanos, mas está agora apostado numa carreira a solo.
Chegou ontem à noite e está a dar entrevistas logo pela manhã. Não sente o jet-lag?
Estou com sono, sim. O problema do sono não é a sensação de sono. A sensação de sono é até prazeirosa e inebriante. O Salvador Dali dizia até que o estado entre o sono e o despertar era o mais criativo. Mas quando se tem que descer uma escada, carregando uma mala, é um horror.
É quase inevitável que comece por lhe falar da separação de Los Hermanos...
Nós chamamos-lhe um hiato. Não sentimos que a banda acabou. Depois de dez anos de trabalho intenso, com pouquíssimos períodos de férias, entrámos mais uma vez em estúdio para fazer um disco e eu não tinha nenhuma música, nem vontade de fazer música. Dividi essa minha angústia com os meus colegas e tomámos esta decisão. A partir desse momento, vi-me, pela primeira vez na vida, com o meu futuro livre, sem nenhum compromisso marcado. É uma situação transformadora, e reencontrei o contacto com essa figura etérea que permite a composição. Quando você escreve ou toca só pelo prazer de o fazer… é só curtição. Para este disco, procurei guiar todos os meus passos pelo prazer. Não fiz nada que implicasse o mínimo sofrimento. E fui tocar com as pessoas que queria, por quem tinha amizade ou admiração.
Como os Hurtmold, por exemplo, um grupo experimental de S. Paulo.
Os Hurtmold circulam num ambiente entre o pós-rock, o free-jazz de Chicago e a música africana. Eles tangeciam o pós-rock mas têm uma africanidade que é bem brasileira. São versatilíssimos. E está também a tocar connosco o Rob Mazurek, um trompetista de Chicago que é um fera nesse tipo de música livre.
Como escolheu os outros músicos que participam no álbum?
O Dominguinhos colabora numa música que me lembra a ligação da Europa com o Nordeste. Possivelmente, fiz essa música sob inspiração das melodias e da sanfona do Dominguinhos. Sou grande fã da Clara Sverner, pianista de música erudita. Fiquei muito impressionado com a sua delicadeza. Para mim, ela é a quinta-essência da feminilidade. Fiz o «Saudade» no violão, pensando no piano dela. A Malu Magalhães tem 16 anos e é um fenómeno de popularidade na Internet no Brasil. Fã de Bob Dylan, Johnny Cash e dos Beatles, ela pediu aos pais dinheiro para gravar uma canção e o dono do estúdio ficou tão atónito diante daquele talento que chamou uma banda para gravar quatro músicas, que ela colocou no MySpace. Quando a imprensa oficial se deu conta, ela já era uma realidade. Isto foi há sete, oito meses e hoje em dia o MySpace dela já vai com quatro milhões de visitas.
Para lançar este disco, criou um selo próprio.
O selo foi para promover a autonomia de negociação. Para poder manter a propriedade do disco. Porque as tecnologias estão-se diversificando e as gravadoras insistem em ampliar o seu ramo de actuação também para o celular e os ringtones. Durante muito tempo, elas justificaram a sua presença com o CD físico, pelo «know-how» de prensagem e de distribuição. Mas ainda não entenderam que o mercado se transformou.
Porquê ter chamado ao seu selo «Zé Pereira»?
No Brasil, o Zé Pereira é um português que saía no Carnaval com o seu tambor. E como tenho esta relação com Portugal… até já tenho nacionalidade portuguesa (mostra-nos muito orgulhoso o bilhete de identidade português). O meu avô e minha avó, por parte do meu pai, são portugueses, da região de Amarante. É por isso que posso ter este passaporte português.
É você quem trata das negociações do seu selo?
Eu não, eu sou um horror. Sou uma desgraça, nem sei o que almocei ontem. Não tenho nenhum rigor técnico, não sei que dia do mês é. Ainda bem que tenho um pai que é muito CDF.
CDF?
Cu de Ferro. Quer dizer muito estudioso. Chama-se CDF à pessoa passa a vida a estudar. O meu pai ajuda-me bastante com os contratos e as negociações. É ele quem assina a produção executiva do disco. Por exemplo, promovi uma negociação lá no Brasil com um portal que tem um canal de música por assinatura e eles ajudaram-me a pagar metade do disco.
Antes de ser editado, o seu disco esteve na Internet para download gratuito. Isso não vai prejudicar as vendas?
Todos os números indicam o oposto. O caminho da humanidade, por natureza das nossas moléculas, é sempre optar pelo menos dispendioso de energia. A Terra é um círculo porque as moléculas se agruparam gastando menos hidrogénio. Eu vejo a Internet como a promoção máxima da nossa capacidade mais intrínseca para comunicar e trocar informação. O ser humano é inteligência e a inteligência é feed-back. A Internet é uma ferramenta de crescimento exponencial da nossa capacidade mais humana de todas. E eu como individuo jamais me oporia por interesse pessoal contra isso. A Net é uma força avassaladora, uma mudança de paradigma da nossa espécie. A minha vida mudou em muitos aspectos, inclusive artisticamente, porque a Internet alimenta-me para eu promover a minha arte. Se sou beneficiado, não posso depois ter a hipocrisia para não devolver isso quando sou produtor. Basicamente, toda a criação é imitação, estamos negociando com o que está em volta. Quando inventaram a partitura, muitos músicos pensaram que o seu negócio tinha acabado. Quando inventaram a rádio, acharam que mais ninguém iria a um concerto. Tenho um amigo meu que disse a um fã de música erudita: «Não consigo ouvir MP3 nem CD. Só consigo ouvir em vinil. É muito melhor». E esse senhor respondeu-lhe: «Eu só consigo ouvir música ao vivo». Na verdade, nada substitui a música ao vivo. Agora, vamos ser contra o MP3 só porque a música ao vivo é boa? A possibilidade de colocar toda a sua discoteca num aparelho que cabe num bolso é uma coisa fantástica!
Todas as canções que estão neste disco foram escritas depois da separação de Los Hermanos?
Já existiam algumas ideias melódicas e duas canções. Na verdade, entrei para o estúdio sem ter todas as canções. Algumas não tinham letra, outras só tinham o refrão. Quando era novo procurava fazer as canções num sopro. Agora não, o sopro dura seis meses. A ideia surge e vai reverberando em mim até ficar pronta. Este é um disco mais vivo, nesse sentido. É um disco que além de falar do período de composição, também fala sobre o período de gravação. Um período que durou oito a nove meses. O meu amigo Zé do Caixão, cineasta brasileiro, diz: «Não tenha medo de falar as coisas sem pensar, mas preste atenção ao que fala». Foi assim que eu fui fazendo as coisas, sem pensar.
O disco chama-se «sou» mas, virando a capa de pernas para o ar, sou lê-se «nós».
Pois é, as coisas já contêm o seu oposto. A escolha de uma coisa só, mesmo que seja a liberdade ou a beleza, é uma estupidez. O alto só é alto porque tem o baixo. O título do disco é mais sobre o movimento entre as coisas do que propriamente sobre elas. Toda a forma tem esse diálogo entre o individual e o colectivo.
As letras são mínimas. Por vezes nota-se quase a tentação de fazer um disco instrumental...
É, eu tenho muita vontade, ainda vou fazer. Mesmo o negócio da voz eu tratei quase como se fosse um instrumento. Eu penso a voz quase como uma textura também.
Nas letras, há dois temas recorrentes: a solidão e a saudade.
É aquele negócio do significado girar em torno das coisas. Quando digo «eu ando em frente para sentir saudade», a saudade de que falo não é aquele negócio que te leva para trás. E a solidão é a mesma coisa: é um diálogo com ela, na verdade. Não estou subjugado pela solidão, pelo contrário, é passivo, pois apaixonado. O radical é o mesmo. Paixão e passividade é a mesma coisa. Tenho uma paixão pelos temas que me faz andar à volta deles, mas não significa que seja refém da saudade ou da solidão.
Ouvindo o disco pensei que há ali uma procura da beleza, mas não da perfeição.
Eu gosto dessa contradição. A Internet trouxe muito essa estética. O que sempre me angustiou nalgumas formas de arte era a sensação de que as pessoas promoviam uma arte para parecer melhor do que são. Para vestir a estima que a arte proporciona. Eu já tive discussões com pessoas que acreditam que esse comportamento aponta o ser humano para uma direcção que vai para além das suas possibilidades. Segundo o Darwin, as plantas e animais que prevaleceram são as que aprenderam a colaborar e a improvisar. Eu acho que todos os nossos passos evolutivos são para o lado. Nenhum é para a frente. As conquistas humanas dizem respeito à nossa aceitação das diferenças, das nossas fraquezas, das nossas limitações. Os sentimentos são confusos, conflituosos, imperfeitos mesmo.
Nas suas letras evoca várias vezes em Deus e numa delas até fala no «caminho da fé». É crente?
Deus é um interlocutor. É você mesmo, sei lá. Uma das letras diz: «Lá vai Deus sem sequer saber de nós, saibamos pois estamos sós». A propósito desta frase, quando estava fazer o disco, perguntei ao maestro A.S. de Freitas,: «Acha que ele vai ficar puto comigo?» E ele respondeu: «Se ele está deixando você fazer, aproveite!». Eu dialogo muito comigo mesmo e a música para mim tem muito essa função de relicário. O Pessoa até fala das coisas que todos os dias acontecem no mundo sem explicação. E que é da sua natureza, da mesma forma que aparecem, desaparecerem. Se formos olhar de perto as coisas, não há como não acreditar em qualquer coisa. Sei lá que nome tem. A minha relação de Deus nesse disco, a minha negação desse Deus tem a ver com um caminho de autonomia no sentido de criarmos as nossas próprias regras. Essa figura com a qual negociamos os nossos conflitos diários, que nunca esteve aqui, que nunca disse nada na verdade, é uma figura que prejudica o nosso jogo.
Em que projectos está a trabalhar neste momento?
Tenho dois projectos experimentais. Um chama-se «Imprevisíveis»; o outro é a «Orquestra YouTube». Consiste em juntar vídeos do You Tube, fazendo colagens com sons do mundo inteiro no ecrã do computador. No outro dia coloquei o Fred Frith de um lado, o Derek Baley do outro, o Bill Clinton tocando sax no meio e em cima disto uma cantora. Fica inacreditável. É a melhor música do mundo!