quarta-feira, 18 de março de 2009
José da Silva
O grande público desconhece a sua existência, mas nos meios da música world é uma figura incontornável. Foi ele quem «fez» Cesária Évora (que aparece na foto a seu lado, juntamento com o cantor francês Cali). Graças ao sucesso alcançado pela Cesária Évora, José da Silva riou a sua própria editora, a Lusafrica, e partiu à descoberta de novos talentos. Sally Nyolo, uma grande cantora dos Camarões, por exemplo. Um dia, foi a Cuba de férias e ficou estupefacto com a música que ouviu. De repente, percebeu que podia contratar a Orquestra Aragon, talvez a mais importante formação musical da ilha de Fidel Castro e não hesitou. Actualmente a lendária orquestra faz parte do seu catálogo, assim como o não menos mítico Septeto Habanero. Conversei com José da Silva em Havana, no ano 2000.
Como é que descobriu Cuba?
Vivi na minha infãncia no Senegal e, como sabe, aí ouvia-se muita música latino-americana e, especialmente, cubana. Há três anos, vim a Cuba de férias, sem nenhuma intenção de trabalhar. Mas quando souberam que eu era produtor de discos, algumas pessoas convenceram-me a ir ouvir música: Septeto Habanero, Típico Oriental, Omara Portuondo e outras coisas. Quando soube que a Orquestra Aragon não tinha produtor, fiquei imediatamente interessado, tanto mais que conhecia a sua música desde a infância. Mas não tomei logo nenhuma decisão. Regressei a Paris, mas passados dois meses estava de regresso a Havana, desta vez para trabalhar, já com uma ideia do que queria fazer. Gravei o primeiro disco do Septeto Habanero e o Típico Oriental. E gostei muito do país. Apercebi-me que os músicos tinham muito a ver comigo e que faziam uma música que me dava muito prazer. Comecei a fazer muitas amizades. E comecei a voltar aqui praticamente de três em três meses. Até porque a minha experiência anterior tinha-me ensinado que nunca conseguiria vender a música cubana se tivesse só um disco ou dois no catálogo. Tinha que, com alguma brevidade, criar um catálogo consistente, coerente, a fim de assegurar uma boa distribuição aos meus discos. É por isso que em três anos já gravei dez discos de música cubana. Gosto muito do trabalho que estamos a desenvolver aqui, penso que a minha experiência como produtor internacional pode ser muito útil para estes músicos que são excelentes, mas não sabem como as coisas se passam fora daqui. Gosto de dar conselhos, explicar como funcionam os contratos, as digressões, a promoção. Estou aqui como estou em Cabo Verde.
Foi por isso que teve a ideia de gravar «Café Atlântico», o disco da Cesária Évora com músicos cubanos?
Exacto. Pensei que Cesária ia gostar também muito deste país e destes músicos. Para mais, como ela cantava duas canções em espanhol há algum tempo e queria muito gravá-las, eu disse-lhe: «Vamos gravar essas canções em Cuba, com músicos cubanos». Arranjei aqui um arranjador para os dois temas e entrámos em estúdio para os gravar, sem compromisso, porque Cesária podia não gostar do resultado. Ao princípio, Cesária estava muito desconfiada, achava que os músicos cubanos tocavam demasiado forte... e quando entrou no estúdio ela ia de pé atrás. Tinha medo que gozassem com a sua pronúncia espanhola. De princípio a coisa não correu muito bem, mas num intervalo, um dos percussionistas põe-se a conversar com ela e, como é alguém muito divertido, que está sempre a fazer rir, conseguiu descontraí-la completamente. Quando voltou para o estúdio ela gravou tudo de seguida,m não apenas as duas canções espanholas, mas também um tema de Boy Gê Mendes que parece um mambo. Para que Cesária trabalhe bem, tem que haver bom ambiente. E isso é o que não falta aqui em Havana. Por isso é que eu digo, vir gravar com a Cesária aqui, foi um risco calculado. Eu tinha a certeza de que esta gente se ia dar bem.
Mas agora abre-se uma nova etapa na sua aventura cubana, com esta grande operação que está levar a cabo aqui. O que é que se está a passar?
Há três anos que trabalho com músicos cubanos, que venho aqui gravar e nunca tive problemas. Mas tive alguns recados por parte do governo e deram-me a entender que se quisesse continuar a trabalhar aqui tinha todo o interesse em legalizar-me. Como quero mesmo levar por diante o catálogo cubano tratei das papeladas e agora pago um imposto mensal de dois mil e cem dólares. Sou representado por um organismo estatal que se chama RECSA, que reúne todas as etiquetas estrangeiras que trabalham em Cuba. De qualquer modo eles não se metem no nosso trabalho, não interferem minimamente.
Como surgiu este convite para a Cesária dar dois concertos no Teatro Nacional de Havana?
Há uma associação de fãs da Cesária que, desde há algum tempo, estava a pressionar toda a gente para que ela viesse actuar aqui. A própria directora do Teatro Nacional é uma grande admiradora de Cesária. Após algumas negociações, que envolveram a Embaixada de Cabo Verde, o Ministério da Cultura acabou por assumir o convite.
Agora vão aproveitar esta estada para começar a gravar o próximo álbum?
Sim, tanto mais que Cesária gosta deste ambiente e que temos aqui uma excelente tecnologia. Isto não quer dizer que vamos ter no disco temas cubanos. Embora, é claro, tendo à nossa volta tantos monstros sagrados da música, é natural que surjam ideias. Por exemplo, soubemos que Chucho Valdés é um fã de Cesária e que gostava de gravar qualquer coisa com ela. Seria pecado não aproveitar.
A Lusafrica não é apenas Cuba...
Para Lusafrica, Cuba são apenas dez discos em cento e oitenta. Toda a África lusófona nos interessa, assim como a África francófona e agora também a África do Sul. Há cinco anos decidi fazer da Lusafrica uma etiqueta «world-music». Por isso, estamos abertos a todas as possibilidades.
Qual é o actual ritmo de publicações?
Neste momento vai baixar um pouco o ritmo. Estávamos a publicar doze novos títulos por ano e quero descer para oito. Fazer menos mas melhor.
Como vê o futuro do negócio com tudo o que se está a passar a nível da distribuição, com a Internet a ganhar espaço sobre as lojas tradicionais?
Sigo tudo com muito interesse. Penso que os produtores como eu não têm nada a temer do futuro. Se o suporte desaparecer para nós é uma despesa a menos. Enquanto houver música - e o homem não pode viver sem ela - serão necessários produtores. Uma coisa é certa: no futuro, o grande negócio vão ser os direitos de autor, por isso dividimos a Lusáfrica em duas empresas: uma trata da produção, a outra do «publishing».
Sei que tem outras empresas, entre elas uma etiqueta discográfica em Cabo Verde, chamada Harmonia.
Sim, mas não tenho muitas mais. Desde há pouco mais de um ano, tenho também um estúdio de gravação em França, Do Sul, que tem associada outra etiqueta discográfica. Do Sul vai especializar-se também na música africana, mas vou ter menos influência aí. Está confiada a gente mais jovem, com poder de decisão. Este ano vão publicar dois discos e, para o ano, logo se verá. Para já o estúdio tem três clientes: Lusafrica, Do Sul e Harmonia. Foi nesse estúdio que fiz as misturas dos discos do Septeto Habanero e do Polo Montañez. Foi também lá que gravei os novos álbuns de Teófilo Chantre e Bau. Fiz o estúdio porque quero dar aos meus artistas tempo de gravação. Percebi que, com tempo, podemos fazer coisas maravilhosas. Durante muitos anos, por falta de meios, tivemos de andar a correr.
Que sonhos ainda não concretizou?
Não sou muito sonhador. Dou a mim próprio mais dez anos no mundo da música, antes de ir fazer outra coisa. Gosto de descobrir coisas novas. Sou um fanático da política, por exemplo. Se calhar, daqui a dez anos, mudo de profissão. Não sei ainda onde, nem como, mas tenho esta ideia.