
Zeca Baleiro. O nome é invulgar, mas explica-se facilmente: «bala», no Brasil, quer dizer rebuçado. Ora o nosso amigo, quando era criança, tinha fama de andar sempre com os bolsos cheios de coisas doces. Ficou-lhe a alcunha, mas hoje as guloseimas são outras: canções «gostosas mesmo», como dizem os nossos irmãos do outro lado do Atlântico. Considerado um dos melhores escritores de canções da sua geração - nomeadamente por Sérgio Godinho, que o convidou para participar no seu O Irmão do Meio -, Zeca Baleiro ainda não goza em Portugal de uma fama à altura do seu talento. A conversa teve lugar em 2002, em vésperas de uma actuação entre nós.
Os seus avós vieram da Síria? Que sabe sobre eles?
Eram mercadores sírios que vieram para o Brasil no início do século. Aportaram em Arari, cidade do interior do Maranhão, onde abriram uma loja de tecidos. Tiveram 6 filhos, entre eles António, meu pai.
Sente-se árabe de alguma maneira, mesmo remota?
Sinto-me bastante árabe, pois a minha família preservou muitos hábitos culturais, como a culinária, devidamente miscigenada com a nordestina, e as reuniões familiares sempre inflamadas e barulhentas.
E sente-se também um pouco português?
Minha mãe é descendente de portugueses da Ericeira. Sua família é muito portuguesa, nos traços, na fala e nos costumes, penso eu. Talvez por isso me sinto tão familiarizado com Portugal, sua gente, sua música, sua comida.
O que é ser maranhense hoje? E brasileiro?
É muito complexo, difícil de definir, até porque moro há 13 anos em São Paulo. Sempre fui nómada. Talvez haja, de facto, uma «alma brasileira», mas certamente tem muitos brasis no Brasil.
Com a sua veia electrónica, infectado de hip hop, «Pet Shop Mundo Cão» é um pouco o regresso ao universo musical de «Vô Imbolá». Isso coloca «Líricas» numa espécie de parêntesis?
Cada disco tem uma alma, uma persona. Líricas é um disco muito artesanal, enquanto que os outros são mais produzidos. Mas posso afirmar que são todos muito sinceros.
O próprio Zeca parece pensar que «Pet Shop Mundo Cão», o seu mais recente CD, é o melhor de todos os que já gravou. Chegou mesmo a dizer que podia ser um testamento, o que deixa entender que colocou aqui tudo o que tinha para dar. É assim?
Era assim quando o lancei, já não é mais.
O disco destila «críticas contundentes, dissabor, frustração», como já disse alguém. Acha mesmo que o mundo está uma porcaria?
Certamente o mundo está uma porcaria, mas não quero ser o arauto do fim do mundo. Quero cantar também a alegria, o amor, a amizade, a beleza, coisas nas quais acredito.
Porquê três produtores para um único disco? O que é que cada um deles trouxe à sua música?
Gosto do caos, da confusão. É a partir disso que crio, por isso convoquei três produtores de origens diversas. Cada um deles trouxe suas peculiares vivências musicais para o meu disco.
Participa no disco uma pequena multidão, de poetas, músicos, técnicos... Como procura transpor para o palco uma tão grande riqueza de pormenores?
Uso muitos samplers, mas tomo cuidado para que o show não se torne mecânico.
Que sentimento lhe ficou da colaboração no disco de Sérgio Godinho, «O Irmão do Meio»?
O Sérgio é um artista formidável, um grande poeta. Adorei cantar com ele «O Coro das Velhas», acho uma faixa muito viva, muito alegre, especial.
No seu «site» oficial, podemos comprar os seus discos. Acha que, no futuro, os artistas vão dispensar as gravadoras e outros intermediários?
Ainda não posso afirmar, mas acho que as coisas se encaminham para algo semelhante.
Pode falar-me dos seus projectos imediatos?
Logo logo será lançado aqui no Brasil um disco que fiz em parceria com o Fagner, artista nordestino de uma geração anterior à minha, à qual devo grande tributo. É um disco com nossas parcerias nestes dois últimos anos, desde que nos conhecemos. Tenho um outro CD em andamento, em parceria com a escritora e poeta paulista Hilda Hilst, no qual participarão dez cantoras, entre elas Maria Bethânia, Zizi Possi, Zélia Duncan, Olívia Byington, Vêronica Sabino e Nana Caymmi. Também quero realizar um disco infantil no próximo ano, além de um novo disco a solo.