
O pretexto para esta entrevista foi The Ragpicker's Dream, terceiro álbum a solo de Mark Knopfler, publicado em 2002. A conversa decorreu num selecto clube do bairro londrino de Chelsea («muito perto da casa do músico», segundo nos confidenciaram). Enquanto esperávamos a nossa vez, cá fora, quisemos saber se o músico estava bem disposto. «Está muito calmo», assegurou a sua assessora para a imprensa, acrescentando esta coisa espantosa: «O Mark está sempre bem disposto, ele é um homem verdadeiramente feliz. Dos poucos que conheço.»
Com efeito, quando entrámos finalmente na sala, o descontraído artista veio receber-nos a meio do caminho, com um grande sorriso e alguma solicitude. «Quer beber alguma coisa? Café? Água?» A simpatia não era fingida, como muitas vezes acontece com este tipo de vedeta, e os seus olhos olhavam directamente os nossos. Há coisas que não mentem e ao longo de toda a conversa o músico não escondeu o seu cansaço (era o seu segundo dia de entrevistas consecutivas), nem a sua boa disposição. Em contrapartida, falou sempre com alguma dificuldade, muito pausadamente, com longas pausas para procurar as palavras certas. E chegou a desculpar-se: «Prefiro tocar a falar».
«The Ragpicker´s Dream» (que se poderia traduzir por «O Sonho do Respigador») é a continuação de «Sailing To Philadelphia», uma espécie de segundo tomo da mesma obra. Porque escolheu este título? É por se considerar a si próprio uma espécie de respigador, no sentido em que todo o criador acaba por ser um aproveitador das sobras dos outros?
Sim, absolutamente. Passamos por fragmentos, palavras, coisas que brilham um pouco, e colocamo-las em diferentes sacos, que mais tarde aproveitamos para o nosso trabalho.
Neste disco, fala da sua infância, da vida difícil dos agricultores, da televisão actual e até dos desenhos animados que os seus filhos vêem. As suas músicas quase parecem páginas arrancadas a um diário íntimo.
Não mantenho nenhum diário. É mais um livro de canções, que está sempre a crescer. Enquanto se escrevem canções, vamos coleccionando-as...
Tem muitas canções inéditas, que nunca gravou ou tocou ao vivo?
Sim, bastantes. Para este disco escrevi canções que acabei por não gravar, porque não ligavam bem tematicamente.
O que é que cria primeiro: a música ou a letra?
Já me perguntaram isso várias vezes, e nunca sei como responder. Umas vezes surgem as letras primeiro, outras vezes é a música. Mas mesmo quando escrevo a letra primeiro, ela tem que ter já algo de musical, um certo ritmo ou uma sonoridade especial.
O título do disco fala de sonhos. Costuma sonhar?
Sonho mais de dia, acordado. Não gosto muito de sonhar a dormir. Porque nunca se sabe o que vai acontecer.
Gosta de ter tudo sob controle, até os sonhos?
Sim, claro: não seria óptimo encomendar sonhos felizes?
Tal como «Sailing to Philadelphia», este «Ragpicker´s Dream» procura estabelecer uma espécie de ponte aérea musical entre a música folk britânica e a americana. Fale-me da sua relação com os Estados Unidos.
A maior parte dos jovens britânicos foram sujeitos à música americana. Eu não fui excepção, fui muito influenciado pelo rock´n´roll, blues, country...
Este é também o seu álbum que soa mais acústico e intimista. Foi premeditado?
Compus a maior parte das músicas numa guitarra acústica. Não foi planeado assim. Aconteceu por causa do tipo de guitarra que usei para compor a maior parte das canções, uma Martin, com um som absolutamente excepcional. O som era tão bonito, que quis conservá-lo no disco. O próprio tom do instrumento que uso dita e influencia bastante a forma como as canções aparecem e se desenvolvem.
Nunca compõe ao piano?
Não tenho sequer um piano em casa. Se tivesse um, provavelmente comporia. Isto é, se tocasse piano suficientemente bem. Mas não é o caso.
No texto que acompanha o disco de promoção enviado para os jornalistas escreveu: «The things that broke my heart as a kid continue to do so now» («As coisas que me entristeciam quando era criança, ainda continuam a fazê-lo hoje»). Fale-me um pouco da sua infância.
Tive uma infância relativamente feliz, mas o que quis dizer com essa frase é que penso basicamente da mesma maneira hoje. Por exemplo: se vejo uma publicidade numa loja que diz «Sapatos de Qualidade», penso que toda a gente deve ter sapatos de qualidade. Todos têm direito a isso. Todos têm direito a boa comida e a um tecto. É uma questão de dignidade humana. Esse tipo de coisas afecta-me e é assim que surgem muitas vezes as minhas músicas.
Sinto que tem receio em ser demasiado nostálgico. É por ter receio de aborrecer as pessoas? Ou trata-se de algo mais profundo do que isso?
Tem razão, suspeito de certos sentimentos e não gosto muito de sentir nostalgia. Por exemplo: acho que é muito perturbador quando as coisas que víamos na juventude já não existem. Aqui há tempos voltei a Glasgow e quis ver a minha primeira escola. Mas ela já não existe. Não sei se isto já lhe aconteceu, mas é terrível ver desaparecer as coisas de que gostámos. Isso tornou-me nostálgico e acabei por escrever a canção chamada «A Place Where We Used To Live».
Na canção «Devil Baby» faz uma crítica mordaz à televisão actual.
Referia-me sobretudo a esses «reality shows» tipo Jerry Springer, que são verdadeiras paradas de monstros. A grande diferença hoje em dia é que agora qualquer pessoa pode ser o monstro («freak»). Você ou eu, nomeadamente. Este é o ponto a que chegámos. Actualmente, toda a gente quer ser famosa. As pessoas pensam que a fama é sinónimo de felicidade. Há uma grande confusão entre o sucesso e a fama. Eu procurei o sucesso, sem dúvida. Acho que todos procuramos ser bem sucedidos nas nossas profissões. Você, por exemplo, deve ser um jornalista com sucesso para estar aqui a entrevistar-me. Mas a fama não traz nada de bom, apenas a violação da privacidade. Consegue pensar em alguma coisa de bom em relação à fama?
A canção «Why Aye Man», que abre o disco, fala de emigração, da necessidade de ganhar a vida fora do seu país, e é uma critica feroz da era Thatcher. O Reino Unido está em melhores mãos, agora com Tony Blair como primeiro-ministro?
Com efeito, na época da senhora Thatcher, muitas pessoas saíram da Grã-Bretanha para ir trabalhar no Continente. Agora, com o Tony Blair as coisas estão melhores. As pessoas que andam para aí a criticar o actual governo deviam recordar esses tempos.
Como viveu o atentado do 11 de Setembro?
Como muitos, suponho. Não tenho nada de muito original a dizer sobre isso. Li textos muitos bons de Salman Rushdie, Ian McEwan e Martin Amis. Grandes escritores que, esses sim, escreveram coisas que nos ajudaram a compreender o que se passou. O texto do Ian McEwan permitiu-me mesmo escrever uma canção, que contudo optei por não incluir neste disco. Quero deixar passar algum tempo, antes de a gravar.
Como se chama essa canção?
«If this is Goodbye».
O que pensa sobre o governo de Bush?
Suponho que me pergunta isso porque a minha música tem muito a ver com os Estados Unidos e dada a relação privilegiada que mantenho com aquele país. Na verdade, o que mais me preocupa nos americanos é a sua tendência para se concentrarem em si próprios. Tendem a esquecer o resto do mundo. Quando lá estou, acontece muitas vezes andar à procura de notícias sobre a Europa, mas é muito difícil encontrá-las na televisão ou nos jornais. Penso que para um Presidente americano é muito importante viajar pelo mundo. Ver as coisas ao vivo. Abrir os olhos para o que se passa no planeta. O excesso de confiança dos americanos é compreensível. É uma filosofia: «Nós podemos fazê-lo», é como que a própria divisa da América. Mas pode criar atitudes pouco saudáveis, como pensar invariavelmente que a nossa maneira de pensar é a melhor. O que não é sempre o caso.
Afirmou algures que está a ter cada vez mais prazer em compor e que o faz hoje com mais facilidade do que nunca. É assim?
Penso que sim. Sinto-me feliz por estar em casa. Por poder trabalhar em casa.
Alguns poetas dizem que as melhores obras surgem da tristeza ou do sofrimento.
Sim, e têm razão em parte. (Ri) Mas acho que pode funcionar para os dois lados.
Que discos tem ouvido ultimamente?
Posso dizer-lhe os que tenho neste momento perto da minha aparelhagem: Revival de Gillian Welch, Love and Theft de Bob Dylan, Hot Rail dos Calexico.
Como é a sua vida quando não está a trabalhar num disco novo ou em digressão?
Não faço nada. Adoro não fazer nada. Faço nada muito bem. (Ri) Gosto de andar de mota, ir ao ginásio, passear, ler. Não preciso de mais hobbies.
Os Rolling Stones andam por aí outra vez, na estrada. Vê-se com 70 anos a fazer digressões pelo mundo, como o B.B. King?
Sempre fiz digressões. É a lógica das coisas... escreve-se uma canção, depois outra e outra ainda, grava-se um disco e faz-se uma digressão. Gosto de todo o processo. Não sei se deva envergonhar-me disso ou achar que sou um sortudo. Ainda não decidi. Suponho que sou um sortudo. De qualquer modo, já não vou fazer tantas digressões como antes. Nem tão longas. Porque quando era mais novo, as digressões acabavam por ser uma forma de fuga. Mas, mais tarde ou mais cedo, volta-se a casa e uma pessoa tem que se perguntar o que anda a fazer. Hoje sei o que estou a fazer e o que quero. Tenho uma família e isso é importante. Tão importante como o meu trabalho.