
As entrevistas por telefone são sempre um pouco ingratas e há jornalistas que se recusam fazê-las. Muitas vezes, porém, não há outra hipótese e se nos propõem uma conversa com uma personalidade importante não vamos recusá-la com o pretexto de não podermos olhar o interlocutor nos olhos. Quando, em Dezembro de 2000, me falaram na possibilidade de entrevistar Juliette Gréco (que vinha actuar a Portugal algumas semanas mais tarde) fiquei excitado. Não vivi na época em que ela era uma grande vedeta, mas li muito sobre o pós-guerra em Paris e vi vídeos em que ela cantava «Desabillez-moi» ou «Jolie Môme», por exemplo. De Jean-Paul Sartre a Boris Vian, de Marlon Brando a Miles Davis, todos os homens do seu tempo procuraram agradar-lhe ou sonharam com ela.
Estava entusiasmado com a ideia desta entrevista mas, infelizmente, a conversa não correu muito bem. Ou pelo menos tão bem como eu gostaria. A senhora estava cansada ou não lhe apetecia estar a aturar jornalistas, não sei. O que sei é que foi um pouco frustrante. Ela nunca quis desenvolver nenhuma ideia e falou sempre com um tom de enfado, para não falar numa sensível sobranceria, como se poderá avaliar por este excerto da conversa. Apesar disso, a conversa tem vários motivos de interesse como se poderá verificar.
Que podemos esperar do seu concerto em Lisboa?
Vou cantar os mesmos temas que cantei no Odéon, aqui em Paris, o ano passado. É o mesmo repertório que canto por todo o mundo.
Tem andado em digressão?
Sim, neste momento trabalho muito, muito, muito. No entanto, em Dezembro parei para descansar um pouco.
A senhora é uma lenda viva e contam-se muitas histórias sobre si. Por exemplo, parece que Jean-Paul Sartre teve um papel decisivo na sua decisão de se tornar cantora.
Absolutamente. Escrevi um livro em que conto isso tudo.
Gostaria, no entanto, de a ouvir contar essa história.
Exagero talvez, mas Sartre gostava muito de mim. Os jovens interessavam-no imenso. Tudo se passou entre amigos. O dono do Boeuf Sur le Toît, um local mítico, veio ver-me ao teatro, onde eu representava Victor, ou les Enfants au Pouvoir, de Roger Vitrac, e disse-me que punha aquela sala à minha disposição para o espectáculo que eu quisesse. Dispus-me a lá ir fazer uns «sketches» com textos do Alphonse Allais, mas Sartre, nas minhas costas, decidiu que eu iria cantar, porque eu tinha uma voz muito particular e ele pensou que daria uma boa cantora. Tudo começou assim.
Tudo se passou muito depressa, a partir daí.
Na altura, as pessoas viam-me como alguém muito diferente e, portanto, incómoda. Limitava-me a ser eu mesma, nem me apercebia a que ponto era diferente.
Era o ícone de uma certa juventude, no seu tempo. Qual é a relação que tem com os jovens de hoje?
Penso que tínhamos, então, a sorte de sair de uma grande dor e humilhação - a ocupação alemã - e sou fruto disso. Foi uma época de grande liberdade e mistério. Eu vestia-me de uma maneira que incomodava algumas pessoas, ou que as chocava mesmo.
Um pouco como Madonna, hoje em dia?
Não creio. Madonna é uma pessoa impudica e eu não o era. Ela mostra muito o seu corpo e eu não o fazia.
Mas que pensa da juventude de hoje?
O melhor possível. Amo-os. Mas inquietam-me um pouco.
Em que sentido?
Não os acho suficientemente individualistas, nem suficientemente violentos, no bom sentido da palavra. Eles pensam que a violência é o sangue e a morte.
Enquanto, para si, é...?
Penso que é agir.
Acha, portanto, que não agem o suficiente, que não procuram mudar o mundo?
É isso.
Conheceu tantos intelectuais e artistas, qual foi a personalidade que mais a marcou?
Todos me marcaram de alguma maneira. Mas digamos que, sobre o plano intelectual, talvez destacasse Merleau-Ponty, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Tive a sorte imensa de conhecer as pessoas mais importantes da minha época, pintores, cineastas, escritores...
Conheceu Amália Rodrigues?
Sim, conheci.
Teve ocasião de a ouvir ao vivo alguma vez?
Uma vez, no Olympia de Paris. Uma noite destas vi um programa no canal Arte sobre a Amália e, de repente, vi-me. Foi quando fui aos bastidores cumprimentá-la, depois do concerto. Lembro-me que nessa noite saímos com a Françoise Sagan e outros amigos.
Cantou tantos poetas, nunca lhe passou pela cabeça cantar Fernando Pessoa?
Quem é Fernando Pessoa?
Um poeta português. Não conhece?
Não. Deveria?
É um dos grandes poetas portugueses, talvez o maior de todos, e mesmo aí em França é considerado um dos mais notáveis poetas do mundo.
Tenho um problema com os brasileiros. Perdão, com os portugueses. E com os brasileiros também, aliás. Não os traduzem.
Fernando Pessoa está amplamente traduzido em França. E muitos outros poetas e escritores portugueses também. Nos últimos anos têm aparecido em França muitas traduções de autores portugueses: António Lobo Antunes, José Saramago...
Quem é que canta esse Pessoa?
Em Portugal já vários cantores o fizeram. Em França há uma cantora, chamada Bevinda, que lhe dedicou um disco inteiro, por exemplo.
Se esse senhor Pessoa quiser que cante um dos seus poemas, ele que mos mande. Estou justamente à procura de novos temas para o meu próximo disco e, portanto, os poetas são bem-vindos.
O senhor Pessoa já morreu. Para além de um novo disco, que outros projectos tem?
Uma artista não fala dos seus projectos. Sabe, nesta profissão somos muito supersticiosos...
O que é que aprendeu de mais importante com a idade?
Aprendi que a idade não importa. Que ela não tem importância nenhuma.