
Cânticos, Preces, Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu
Biscoito Fino, 2003
Cânticos, Preces, Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu, na voz de Maria Bethânia é o título completo de um disco publicado pela cantora baiana em 2003. Bethânia assegura que o disco já existia há três anos e que não era para ter grande difusão: apenas duas mil cópias, com o objectivo de ajudar a Igreja da sua cidadezinha de Santo Amaro, «uma igreja muito sumptuosa numa cidade mínima». Numa conversa que tivemos em Lisboa, explicou-me que «este não é um disco de carreira, mas um projecto especial». E revelou: «Há muitos anos que queria fazer projectos especiais. Tenho uns dez preparadinhos, para quando tiver oportunidade ir realizando. Inclusive, abri um selo, dentro da minha editora, para acolher estes projectos. E estou adorando isso». Contou-me então que, um mês antes, tinha realizado mais um desses projectos, «um disco que se chama Brasileirinho», onde canta desde «O Cigarro de Palha» do Gonzagão até o Villa Lobos mais nobre. Um disco de memórias musicais, onde cabe toda a riqueza musical do Brasil. Aliás, a etiqueta chama-se Quitanda, que é uma baiuca onde se vende um pouco de tudo, desde uma simples banana a um rádio.
Bethânia orgulha-se visivelmente da sua infância católica («Fui anjo, arcanjo... coroei Nossa Senhora»), mas lembra que a Bahia foi o primeiro porto escravo do Brasil e que os baianos têm no sangue uma relação muito forte com a cultura e a religiosidade africana. Com a maneira festiva que os africanos têm de festejar a sua fé. «A Bahia é o escândalo disso», assegura rindo. «E a Nossa Senhora gosta dessa alegria do povo, gosta da festa. Eu sinto isso».
Há uma dimensão quase carnal no modo como a irmã de Caetano Veloso (autor de uma «Avé Maria» que figura neste disco) fala da Virgem. Para ela, a mãe de Jesus é uma mulher da Terra, casada, e Bethânia vê nela uma porta-voz das pessoas mais simples, que se sentem pequenas diante de Deus, «que está lá tão longe, tão distante». «Nossa Senhora pode levar as nossas súplicas. A sensação que eu tenho é que ela anda muito por aqui, junto de nós, orientando-nos e protegendo-nos. Como mãe».
A concretização desta «Homenagem à Mãe de todo o Amor» deve muito ao maestro Jaime Alem (que nome tão apropriado para um projecto deste jaez). Ele foi responsável por toda a criação musical e a sua própria mulher, a cantora Nair Cândia também participa no disco. A maior parte do repertório, no entanto, saiu da memória da cantora e da contribuição de amigos como Gilberto Gil, que musicou quadras populares expressamente para ela.
Cânticos, Preces, Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu não é propriamente um disco para passar na rádio, nem para ouvir no carro e muito menos para servir de fundo sonoro numa reunião de amigos. Mas é um disco belíssimo, até para não-crentes. A música é apaziguadora, transporta-nos para outras esferas, lava-nos a alma. Não tanto porque se trata de orações e cânticos religiosos, mas porque o álbum está superiormente realizado. A profunda emoção da cantora acaba por nos ganhar, quase sem darmos por isso. A prova? Não sou crente, nem grande fã da cantora baiana, mas adorei ouvir o álbum. Só pode ser milagre!